terça-feira, 15 de maio de 2012

BORIS PASTERNAK




A ESTEPE INCENDIADA



Poucas obras terão gerado tanta polémica até hoje, por razões que escassamente pertencem ao domínio literário, como O Doutor Jivago, de Boris Pasternak, editado pela primeira vez em Itália no ano de 1957. Entendido como um libelo acusatório dos acontecimentos que se tinham passado na U.R.S.S. desde a Revolução de Outubro, este romance, de autoria de um dos mais credenciados escritores soviéticos, foi logo traduzido e editado em todo o Ocidente, obtendo um enorme sucesso. No ano seguinte à sua primeira edição, e no auge de uma explosiva Guerra Fria, era concedido o Prémio Nobel ao seu autor. Por fim, veio o filme homónimo de David Lean, transformando O Doutor Jivago no romance soviético mais popular em todo o mundo.

Entretanto, na União Soviética, e um pouco por todos os países de Leste, tinha começado uma campanha nos meios de comunicação social contra Boris Pasternak. Acusado de idealismo e espírito contra-revolucionário, O Doutor Jivago foi recusado pela prestigiante revista “Novy Mir”, e após a sua publicação no Ocidente, Boris Pasternak foi expulso da União de Escritores (o que o impossibilitava de voltar a ser editado) e é pressionado a recusar o Prémio Nobel. Os últimos anos da sua vida foram passados, no mais estrito exílio interior, na sua “datcha” em Peredelkino, nos arredores de Moscovo, redigindo uma peça dramática que só será publicada muitos anos depois da sua morte em 1960.

Até ao início da década de setenta, com a ampla divulgação da obra de Soljenitsyne e da difusão internacional dos processos dos dissidentes, O Doutor Jivago foi considerado como o caso mais revelador da falta de liberdades e de perseguições ao poder criador na U.R.S.S. e a expressão viva da hipocrisia do movimento comunista.

Mas passados trinta anos, O Doutor Jivago voltou de novo à ribalta. As autoridades soviéticas, com o intuito de exprimirem a sinceridade das suas intenções de abertura no quadro da política de transparência da era grobatchoviana, resolveram arrancar o espinho doloroso que era este romance, permitindo que no próximo ano seja pela primeira vez publicado em russo - e precisamente na revista “Novy Mir” que antes o tinha recusado. Mais uma vez, O Doutor Jivago vai servir de porta-estandarte de uma vontade política e a sua promoção vai de novo reflectir interesses que não são puramente literários.

O sucesso de O Doutor Jivago foi, contudo, uma espécie de maldição para Boris Pasternak. Toda a obra anterior deste autor ficou soterrada pela lava de vulcão que é este romance: em todo o mundo, Boris Pasternak é quase unicamente conhecido como o autor de O Doutor Jivago.

Ora Boris Pasternak é, antes do mais e sem desmerecer a importância da sua obra romanesca, um dos mais importantes poetas russos deste século. Tendo sofrido inicialmente a influência dos poetas simbolistas Alexander Blok e Andréi Biély e do filósofo Nicolas Berdiaev, Pasternak descobre, em 1913, o movimento futurista, torna-se amigo de Maïakovsky e começa a publicar, sob a égide daquele movimento, as suas primeiras colectâneas. Entre o desespero e a descrença e um grande optimismo e convicção no processo revolucionário, vai publicando, além de algumas novelas e de uma narrativa autobiográfica, um número significativo de obras poéticas, ao ponto de ser considerado pelo Partido e pela União de Escritores (numa época em que esta vive sob o patronato benéfico de Gorki) como o maior poeta vivo da União Soviética. A sombra negra do ostracismo só começa a cair sobre Boris Pasternak quando, na década de quarenta, a vida cultural soviética fica dominada pelo mais estreito “jdanovismo”.

Não se julgue, no entanto, que a redacção de O Doutor Jivago implique alguma alteração substancial no pensamento do autor. Desde os anos trinta que Boris Pasternak redigia este romance com a intenção de ser uma “summa” das concepções de arte, de vida e de revolução que, de uma forma esparsa, se encontravam já em toda a sua obra anterior.

Boris Pasternak fora desde sempre um “compagnon de route”, aderindo emocionalmente à revolução, mas receando também o que, depois desta, poderia desmoronar do velho mundo: a burguesia russa vivia então, no meio de um imenso oceano de miséria do operariado e do campesinato, um período de grande projecção criadora - que decerto iria desaparecer...

Este longo fresco da Rússia soviética, que vai desde a revolução de 1905 até aos anos quarenta, foi, contudo, correctamente acusado pelas entidades oficiais: à luz do marxismo-leninismo, O Doutor Jivago reflecte de facto um acentuado idealismo. O que ressalta neste romance é a presença de uma energia telúrica, vital, que anima a imensidão da estepe e da taiga e que brota nas inúmeras florestas atravessadas pelas serpentes infindas de comboios. Mas que também faz erguer, nos invernosos becos das cidades e vilas siberianas, os operários, camponeses e soldados que se irão insurgir contra quem os subjuga, fazendo a revolução.

O Doutor Jivago é, antes de mais, uma narrativa cristalina e de um intenso lirismo, a aprendizagem da ferocidade e da violência, e de como, na revolução, o oportunismo e a mediocridade campeiam ao lado do voluntarismo mais arrebatado. A desagregação económica, motivada pela revolução e pela guerra civil, com o seu lastro de miséria e de infindáveis filas de refugiados enlouquecendo em horizontes de neve e gelo, vai ensombrar esta imagem empolgada da revolução que Boris Pasternak alimentava, fazendo com que tombe num negro pessimismo, convencido de que o caos revolucionário irá asfixiar o impulso vital que estava na sua verdadeira raiz.

O percurso acidentado de Jivago e, em particular, o núcleo narrativo que é a relação Tonia/Jivago/Lara têm um valor eminentemente simbólico por estabelecerem a consonância entre o quadro emocional da personagem principal e o macrocosmos da revolução. E torna-se assim notório que a belíssima relação Jivago/Lara, repleta de encontros e desencontros, filha da revolução, tem o sentido do pulsar da seiva numa árvore (não é por acaso que Jivago “vê” Lara numa sorveira que espalha as suas bagas pelo chão), e que, tal como a revolução se sufoca na vertigem dos tempos sinistros, o Inverno irá gelar a perenidade ilusória desta paixão.

Pode-se dizer que as autoridades soviéticas, sob a batuta de Gorbatchov, não fazem mais do que repôr o que é devido (mesmo sabendo que o romance de Boris Pasternak tem ainda inúmeros detractores na U.R.S.S.), ao permitirem a edição em russo de O Doutor Jivago. Este romance é hoje um clássico, na linha da tradição realista russa, admirável pela utilização da elipse e pelo encadeamento de tempos narrativos paralelos, assim como pela funcionalidade inovadora das descrições naturalistas.

Por fim, convém referir o notável trabalho que constitui a tradução, com base na versão italiana, de Augusto Abelaira. Só se lamenta que o editor, ao utilizar esta antiga tradução, não tenha tido a ousadia de publicar o prefácio de Aquilino Ribeiro e as traduções dos poemas de Iuri Jivago feitas por David Mourão-Ferreira para a edição original, nem demonstrar a necessária consideração pelo leitor que sempre revela assinalar-lhe que está perante a reedição de uma tradução.

Publicado no Expresso em 1987.



Título: O Doutor Jivago
Autor: Boris Pasternak
Tradução: Augusto Abelaira e Moura Pimenta para as poesias de Iuri Jivago
Editor: Publicações Europa-América
Ano: 1987
499 págs., € 18,42


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