terça-feira, 31 de julho de 2012

JOSEPH CONRAD 2



O LUGAR DA MORTE



O romance O Negro de Narciso de Joseph Conrad tem, de uma forma exemplar, uma coerente unidade dramática: é durante uma viagem de Bombaim a Londres que o autor encena uma sucessão de conflitos que corporizam algumas das suas constantes inquietações éticas e que sempre considerou como mais explicitamente cristalizáveis na árdua e solitária luta de uma tripulação com o mar.

De facto, é o mar que, pela violência indominável das suas intempéries, anima permanentemente o espectro da morte que serve de teste limite à fibra moral dos homens. E é no exorcismo, pela acção, do medo da morte que brota o sentimento da solidariedade, esse cimento social que, para Joseph Conrad, em termos civilizacionais, dá sentido a existência.

Esse sentimento, em O Negro do Narciso, é provocado no colectivo da tripulação (e um dos motivos de interesse deste romance está na capacidade de Joseph Conrad em colocar à boca de cena todo um colectivo) por James Wait, o negro que embarca já tocado pela morte, mas sem coragem para a enfrentar.

No entanto, o comportamento ambíguo de James Wait, resultante da sua impotência face a noiva mortal, faz com que essa solidariedade só apareça por uma dolorosa obstinação, visto que os marinheiros receiam estar a ser vítimas de um logro e se estejam habilmente a servir da sua eventual fragilidade e complacência. Tanto mais que esse receio é avivado, de um modo constante, por Donkin, o marinheiro que, minado pelo rancor da sua própria tibieza, lhes vai apontando a verdade venenosa de se resignarem à ingrata ordem que lhes impõe o navio.

Porque, e essa é uma das revelações fulcrais na “literatura marítima” de Joseph Conrad, a força moral de um homem demonstra-se na sua capacidade em assumir, seja em que circunstância for, o lugar que lhe compete na luta contra o mar. É só nessa ordem que os rudes marinheiros podem descobrir o sentido das suas vidas, sentido esse que se esfuma em imprecisas reminiscências mal desembarcam.

É por isso que a terra será sempre, para Joseph Conrad, o “verdadeiro” lugar de morte do marinheiro (daí que James Wait morra à vista de terra e que a tripulação pressagie que a acalmia que impossibilitava o “Narciso” de progredir no final da viagem seja “provocada” pelo próprio moribundo, na sua incapacidade de encarar a morte), isto é, o lugar em que o desvirtuamento dos valores nascidos no mar o acabrunha e confunde (ao mesmo tempo que faz rejubilar Donkin, o tripulante cobarde). A longa viagem do “Narciso” metamorfoseia-se assim numa lúgubre travessia de um esquife a caminho da terra, o real “coração das Trevas” do marinheiro.

A edição portuguesa contém, honestamente, o prefácio que Joseph Conrad escreveu para a edição original e que é uma das mais importantes reflexões do autor sobre a sua concepção da arte de ficcionar. Aí se encontram explícitos os seus objectivos artísticos: a permanente ânsia de conseguir visualizar o que narra (“A minha tarefa (...) é, acima de tudo, a de convencer o leitor a ver”), a busca de uma “verdade” que fundamente a existência das coisas e dos seres e que ele pretende transmitir por uma via “sensorial” a todos os “temperamentos”, de modo a criar uma “solidariedade” universal, a consciência da precaridade desta tarefa, etc. Mas o que se torna bem evidente, nas entrelinhas deste notável prefácio, é a quase insana labuta deste homem, cuja fé na produção artística o conseguiu transformar de um anónimo marinheiro polaco num dos mais admiráveis estilistas da literatura inglesa.

Publicado no Expresso em 1987.



Título: O Negro do Narciso
Autor: Joseph Conrad
Tradutor: Luzia Maria Martins
Editor: Relógio d’Água
Ano: 1987
206 págs., € 8,30




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