segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

LARS GUSTAFSSON 1




O MAL ABSOLUTO



Conforme se vai lendo História Com Cão, o último romance de Lars Gustafsson traduzido para português, percebe-se que este possui uma “tonalidade” que o demarca na produção literária contemporânea a que habitualmente se tem acesso no nosso país; e o leitor que esteja um pouco familiarizado com os romances deste autor (as Edições Asa já lhe traduziram e editaram três livros) sabe que é comum às suas restantes obras. Porém, de um modo contraditório, assalta também ao leitor a dúvida (talvez irresolúvel) de saber se essa “tonalidade” é de facto específica da produção narrativa do escritor ou característica do contexto cultural de onde emana, já que se lhe pressente alguma sintonia com o “tom” de outras manifestações artísticas (literárias ou não) originárias da Suécia.

Seja como for, Lars Gustafsson é hoje não só o principal “embaixador” desta literatura periférica, como está estreitamente ligado à definição do seu “mainstream”, pelo trabalho crítico e ensaístico que exerce desde os anos cinquenta e, em particular, pela obra romanesca que começou a construir a partir da década seguinte. Além disso, o “diálogo”, nem sempre pacífico, que estabeleceu ao longo de mais de trinta anos com o seu amigo, e escritor, Sven Delblanc (falecido no ano passado), sobre todos os aspectos da realidade sueca, é hoje considerado como uma das mais estimulantes reflexões produzidas no seio da cultura do seu país durante este século.

Confesso que, de início, receei sobre o resultado deste romance, ao constatar que se passa em Austin, no Texas (cidade, em cuja universidade, Lars Gustafsson, há muitos anos, lecciona), pois estava convencido que a “tonalidade” referida era nórdica em demasia para que fosse transponível para outra área cultural e geográfica, sem parecer artificiosa. No entanto, Lars Gustafsson resolve muito bem este “risco” através da criação de um conjunto de situações que integram bem o leitor nos costumes de uma típica cidade média americana. E, algumas delas, são verdadeiras preciosidades literárias: recordo, por exemplo, o pormenor, bem humorado, da personagem principal, em noites de insónia, “dialogar” com a sua máquina limpadora de fundos de piscina…

Mas, por outro lado, talvez seja essa “mudança de paisagem” que torna mais evidente algumas das constantes narrativas que tipificam a produção literária deste autor.

Primeiro, a necessidade de uma ambiência de certa “semi-ruralidade”. Como se esse pequeno cosmos, com relações de vizinhança bem definidas, contivesse toda a problemática do mundo... Por isso, as notícias vindas de “outros universos” só servem para confirmar a sintonia que existe com esse pequeno cosmos retratado. Assim, em História Com Cão, as catástrofes naturais e sociais, de que a personagem principal vai tendo conhecimento, estão em perfeita consonância com aquilo que descobre, em pequenos sinais, no seu mundo privado: a crescente presença, por todo o lado, de um irremediável “mal absoluto”.

A segunda, o tipo de personagem principal que centraliza toda a estrutura narrativa: é sempre uma figura de cinquenta/sessenta anos, culta ou, pelo menos, com uma séria capacidade de reflexão sobre os mais ínfimos e efémeros pormenores do quotidiano e que, perante a diversidade da vida, tem sempre uma atitude de humildade quase religiosa… mas bem temperada de ironia.

Por último, todo o romance se centra, como se fosse uma monografia, sobre um tema de cariz filosófico, tratado de um modo exaustivo (deve-se a este aspecto o reconhecimento de que Lars Gustafsson é, antes do mais, um narrador-filósofo), e que ressalta das circunstâncias mais triviais da vida. É esta característica que permite estabelecer um dos contornos identificadores da sua obra: uma espécie de “densidade leve”, resultante de uma reflexão, integrada no mais simples e banal quotidiano, sobre questões determinantes da existência.

O carácter explícito em excesso destas componentes narrativas comprova que História Com Cão não é a melhor obra de Lars Gustafsson (tendo à mesma todos estes ingredientes, não há dúvida que o melhor romance deste autor continua a ser A Morte De Um Apicultor: a reflexão, verdadeiramente sentida - dando a este termo a sua significação mais “radical” -, sobre o papel que a “dor” tem na nossa existência, dá a esta obra uma dimensão pungente que a torna inesquecível). Em duas linhas, descreve-se a sua situação dramática nuclear: uma noite, Erwin Caldwell, juiz de falências em Austin, quando vai colocar o lixo na rua, vê um cão que, como em noites anteriores, ao tentar comer alguns restos, despeja o caixote, espalhando o conteúdo no seu jardim; perante a situação, perde as estribeiras e esmaga-lhe a cabeça à pancada. Este acontecimento desencadeia na personagem principal, figura com uma vida pacata e serena, um conjunto de dúvidas que passa a ocupar-lhe, de um modo obsessivo o seu espírito e ao qual parece reconduzir todos os pequenos actos e situações do quotidiano: “Se Deus existe, qual é então a origem do mal? Se Deus não existe, qual é então a origem do bem?” Será que “as concepções morais são apenas antropologia, como a etiqueta à mesa”?

Acredito que, apresentadas desta forma, estas questões possam parecer um pouco “démodés”, desligadas do frenesim do nosso mundo. Mas a capacidade narrativa de Lars Gustafsson, ao revelar como elas transparecem nas mais banais situações, permite-nos compreender como são determinantes, pois que nada, ao nível do comportamento pessoal ou da concepção que se faça do mundo, terá sentido sem a sua, mesmo que ilusória, resolução privada.


Publicado no Público em 1996.


Título: História Com Cão
Autor: Lars Gustafsson
Tradução do Sueco: Ana Diniz
Ano: 1996
Editor: Edições Asa
221 págs., € 10,47





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