sábado, 2 de fevereiro de 2013

THOMAS KENEALLY



O TORMENTO DOS INOMINADOS



Uma das mais simples faculdades da criação artística de cariz narrativo - mas que não é, por isso, minimizável - é a sua capacidade de permitir viajar por espaços e tempos que seria de outra forma impensável. Porém, até os leitores menos curiosos por cenários longínquos sabem que a literatura não é só isso: é a sua capacidade de transfigurar lugares e vidas que faz com que um bom romance, mesmo contextualizado em regiões muito localizadas ou exóticas, provoque uma cumplicidade que abre sentidos à existência do leitor e lhe suscita um sentimento de fraternidade na “espécie”. Se não fosse isso, quem se interessaria no nosso país por uma história situada numa pequena cidade do norte da Nova Gales do Sul na passagem deste século? E, contudo, são romances como este Uma Cidade À Beira-Rio de Thomas Keneally que nos fazem lembrar estas considerações basilares, mas determinantes, para compreender as potencialidades (e as especificidades) da produção artística.

A literatura australiana das últimas décadas tem revelado alguns autores que se têm distinguido por uma obra pujante na sua diversidade estilística e temática. Lembro, para só referir os autores que têm obtido reconhecimento internacional, os nomes de Christina Stead, de Frank Moorhouse, de David Malouf (que ganhou o ano passado a primeira edição do Irish Impac Award, o prémio literário internacional para uma obra com maior valor financeiro em todo o mundo), de Peter Carey e de Thomas Keneally. De todos estes, creio que só as obras de Peter Carey e de Thomas Keneally foram traduzidas para português - e o último, seguramente, porque um senhor chamado Steven Spielberg resolveu fazer um grande filme, A Lista de Schindler, a partir de um romance homónimo deste autor.

Creio que, há alguns anos atrás, se afirmasse que um escritor era um excelente profissional, se entenderia isto como uma forma encapotada de diminuí-lo. Sinceramente, espero que isto já não suceda, porque a leitura dos romances de Thomas Keneally deslumbram, antes do mais, pelo cuidado perfeccionista na contextualização e na conformidade estilística que caracterizam um grande profissional. Uma Cidade À Beira-Rio é uma história muito bem contada, através de uma significativa versatilidade estilística, onde a diversificação rítmica da frase atinge inúmeras vezes uma verdadeira dimensão poética, em que a natureza pulsa com um intenso lirismo e onde, por fim, o humor e uma emoção contida em parâmetros expressivos de grande qualidade conseguem fixar, de forma inolvidável, certas situações dramáticas e certas personagens.

Uma classificação apressada situaria Uma Cidade À Beira-Rio como mais um romance de fronteira e de pioneiros, idêntico a muitos que a literatura americana já produziu, mas aqui no contexto geográfico australiano. No entanto, estas regras de subgénero romanesco - claramente assumidas pelo autor - têm uma significação muito peculiar nesta obra. Com um pouco de ironia, pode dizer-se que a personagem principal deste romance é a cabeça de uma rapariga desconhecida que morreu quando fazia um aborto clandestino e que, conservada dentro de um frasco, deambula por toda a narrativa e, em particular, na consciência de um “merceeiro” sem vocação para tal, chamado Tim Shea. E percebe-se que a verdadeira “fronteira” que se questiona neste romance é entre a existência e a inexistência e que ela se situa entre a posse ou não de um “nome”.

Mas a questão não é apenas onomástica. O que significa ter um “nome”? Aqui cruza-se no romance uma outra história muito esclarecedora: a de Lucy, a criança órfã - e a forma como é narrada a morte do seu pai distingue de imediato um grande escritor - cuja vocação suicida é resultante da certeza que a indisponibilidade afectiva dos outros para consigo a torna num ser “inominado”, isto é, de existência insignificante. Percebe-se, assim, que “aquilo que nomeia” é a teia de afectos que nos rodeia, que a questão do nome é uma questão de amor.

É esta identificação da vida com a teia de afectos que define verdadeiramente a linha de fronteira, repudiando todas as presenças tentaculares da morte, apareça ela através de uma anónima cabeça decapitada, de uma criança suicida, da Guerra Anglo-Bóer, da peste bubónica, da hipocrisia social (com o seu cortejo de discriminações sexuais e raciais) ou de formas larvares de fascismo. Por isso, o pioneirismo de Tim Shea afirma-se na simplicidade de quem, como qualquer outro homem comum atento, sabe que, inevitavelmente, esteja onde estiver, está “sempre” na linha de fronteira, defendendo a especificidade cristalina do “nome” contra o desfigurante anonimato da morte.

Por tudo isto, pode afirmar-se que Uma Cidade À Beira-Rio é um belíssimo romance “cristão”, no sentido mais profundo e universalista deste termo, e bastante invulgar na recente literatura contemporânea. Pena é que, mais uma vez, esta tradução seja muito irregular, apresentando um português que exige, em inúmeras páginas, a mão de um bom revisor. Quando será que alguns dos nossos editores se convencem que a defesa de uma obra passa, antes do mais, por uma boa versão em português, mesmo que isso acarrete mais alguns custos? Esperemos que os nossos leitores saibam resistir a “este” português e leiam um romance que merecia um melhor destino no nosso país.


Publicado no Público em 1996.



Título: Uma Cidade À Beira-Rio
Autor: Thomas Keneally
Tradução: Sérgio Fiadeiro
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1996
391 págs., € 19,64


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