segunda-feira, 5 de agosto de 2013

ROBERT MUSIL

 
 
 

 A ARTE PRENUNCIATÓRIA

 
Para quem lê hoje O Jovem Törless, uma das constatações mais assombrantes é a modernidade do estilo e, em particular, da problemática deste romance com que, há mais de oitenta anos, o jovem Robert Musil iniciou a sua carreira literária. Provavelmente será uma pretensão inútil procurar uma explicação para este facto. Mas se alguma houver, só poderemos encontrá-la na efervescência intelectual, artística e científica de Viena do princípio do século, esse cadinho único que transformou de um modo radical toda a cultura contemporânea.


Viena era a capital de um exangue Império Austro-Húngaro e vivia então uma época com os contrastes típicos de “fin-de-siècle”. O Estado, obcecado com uma política imperialista que pretendia hegemonizar os Balcãs, não percebia que a crescente afirmação autonómica das suas nacionalidades o iria transformar numa pálida lembrança de grandeza e glória. A classe dominante, em redor do patriarca Francisco José de Habsburgo, convicta dos seus princípios de honra e de ordem militar, vivia, num luxuoso requinte palaciano, de todo alheada dos clamores proletários que vinham da indústria nascente. Mas é também na capital deste decadente Império que aparecerá uma burguesia de apurado gosto estético, mundana e informada, onde irá germinar uma excepcional elite intelectual: os nomes de Hoffmansthal, Schnitzler, Kraus, Freud, Schonberg e Klimt são disso exemplo.

 
Foi este romance (cuja tradução rigorosa do título alemão o deveria fazer chamar, em português, As Perturbações do Pupilo Törless) que deu origem ao imediato reconhecimento de Robert Musil por essa elite. Mas ainda se estava longe das interpretações que este romance haveria de receber, após a morte do autor e da publicação de O Homem sem Qualidades, e que o consideraram como “prenunciatório”… tal era a compreensão que possibilitava do comportamento dos carrascos do III Reich.

 
 Mas de que trata O Jovem Törless? Da formação de um jovem colegial, da consciencialização da sua sensualidade, do início das suas interrogações éticas e metafísicas. Esse processo de formação do jovem Törless atinge, no entanto, um ponto crítico numa situação-limite em que profundamente se envolve: ele e mais dois colegas, descobrindo que um outro aluno, Basini, rouba dinheiro do armário dos seus colegas, decidem não o denunciar, mas exercer sobre ele uma série de represálias, colocando-o ao seu serviço e estabelecendo uma relação perversa em que os três procuram saber até que ponto vai a capacidade de humilhação e a cobardia de Basini.

 
Mas o que interessa a Robert Musil não é só como se criam relações de poder intersubjectivas, nem quais as circunstâncias que levam uma estrutura caracterial “fragilizada” a tornar-se objecto de uma rede de dependências e sujeições que os outros aproveitam. A interrogação de O Jovem Törless é de ordem metafísica: partindo da consciência crescente do seu corpo e da sua relação com a Natureza, Törless procura conhecer a especificidade da sua alma e os seus contornos e só nesse sentido lhe interessa saber como é que Basini irá reagir ao seu destino.

 
Esta busca desencadeia-se no momento em que, estando o jovem Törless afastado da família por causa do internato, se sente invadido por uma intensa melancolia que o predispõe a uma visão perturbante: atraído pela sensualidade exposta da prostituta Bozena, pressente nesta uma face oculta da sua própria mãe e semelhante identificação provoca-lhe, como reacção, uma enorme repulsa por “esta dimensão” de si.

 
É a descoberta dessa dimensão que permite a Törless compreender que existe “também nele” um indefinível Basini. E é por isso que, de um imediato repúdio, por razões éticas e sociais, Törless passa a uma fase em que pretende compreendê-lo, e depois, quando percebe que existe em Basini qualquer coisa em comum ou em estreita consonância com a sua própria sensualidade, se deixa deslizar para o deleite de uma relação homossexual.

 
Com esta relação, Törless consegue perceber claramente que existe uma enorme proximidade ética entre o comportamento indigno de Basini e a actuação dos seus colegas torcionários. E só demarcando-se desta é que Törless consegue estabelecer a “coexistência pacífica” entre as dimensões ambivalentes da sua alma.

 
No íntimo, Törless consciencializa então uma relação de poder entre uma dimensão ética e racional da sua alma sobre outra, emotiva e sensorial, e é desta forma que consegue atingir alguma autonomia em relação ao outro que existe em si e o fragiliza (repare-se na proximidade desta problemática com a reflexão científica que um prestigiado conterrâneo do autor, Sigmund Freud, desenvolvia por esta altura). Torna-se por isso claro que, para Robert Musil, só aceitando em nós a força obscura do desejo, se atinge a serenidade adulta de compreender os outros como certa dimensão de nós próprios.

 
Saliente-se, por fim, que um dos aspectos mais fascinantes na obra de Robert Musil é o de transmitir estilisticamente a ideia de que o romance se produz em frente do leitor. Semelhante efeito resulta da sua própria concepção da literatura (e onde Milan Kundera foi, de certo modo, fundamentar a sua produção romanesca) que entende o romance como uma forma específica de conhecimento e que ele próprio deverá espelhar esse acto, através da explicitação dos seus tacteamentos e do seu sinuoso caminho pelo meio da obscuridade.

 
Além disso, O Jovem Törless está ainda repleto de apontamentos realistas, que o autor irá abandonar na sua posterior ficção, e de uma minuciosa e subtil observação psicológica, que acentua o carácter de inquirição, subjectiva e inquieta, desta obra. Esperemos que o leitor se deixe envolver neste contínuo serpentear de interrogações e perplexidades de O Jovem Törless, pois irá entender, ao longo destas páginas, por que motivo esta obra é reconhecidamente considerada um dos mais estimulantes clássicos da literatura contemporânea.

 
Publicado no Expresso em 1987.

 

Título: O Jovem Törless
Autor: Robert Musil
Tradutor: João Filipe Ferreira
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1987
246 págs., € 6,34
 
 

 



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