segunda-feira, 18 de novembro de 2013

E. L. DOCTOROW 1

 
 
 
 

AS PORTAS DO MUNDO ADULTO

 
Em princípios de setenta, quando apareceu The Book of Daniel de E. L. Doctorow, a crítica americana ficou muito bem impressionada com este romance, porque conseguia colocar implícitas preocupações militantes (o tema era - mais uma vez - o caso Rosenberg) numa perspectiva original. O romance centra-se no filho desse casal de cientistas que resolve encetar, dez anos após o famoso julgamento, uma investigação com o intuito de perceber como é que a argumentação judicial destruiu em termos psicológicos os seus pais. Com esta estratégia, The Book of Daniel transmitia toda a perspectiva “interior” do drama dos Rosenberg, revelando, com maior acutilância, a dimensão brutal da situação sociopolítica que os envolveu. E. L. Doctorow iniciava, desse modo, a fase de maturidade da sua obra, onde, na sequência do trabalho de John Dos Passos, procurava problematizar as relações entre ficção e História. De seguida, vai desenvolver esta problemática em Ragtime, o seu romance mais conhecido, em consequência do filme homónimo de Milos Forman, em que associa personagens de ficção e figuras reais e cria, num jogo desmistificador e humorado, relações plausíveis entre estas, dando, ao mesmo tempo, um retrato inovador e estimulante dos anos vinte americanos. O que se pretendia, era, mais uma vez, “inventar a História” para melhor revelar a verdadeira História.
 
Nos últimos tempos, a obra de E. L. Doctorow tem-se orientado para a tentativa de estabelecer correlações entre história pessoal e história colectiva, fazendo um levantamento diversificado dos parâmetros culturais, das linguagens e dos mitos de várias épocas contemporâneas. É este o sentido de livros como Lives of Poets e, em particular, de Feira Mundial, agora traduzido.

 
Este romance, explicitamente autobiográfico, narra a infância do autor até aos dez anos, terminando quando já é previsível a participação americana na II Guerra Mundial. É, pois, um romance sobre o crescimento e a formação, em que se procura expor as interrogações e a gradual penetração do olhar de uma criança no universo adulto. Por conseguinte, o romance é construído como um diálogo de olhares entre a personagem principal e os seus parentes mais próximos, realçando-se, assim, uma diferença de pontos de vista resultante, antes do mais, de uma nova formulação de regras, de construção de outras linguagens, de identificação com outros mitos. Para esta criança, é a dolorosa confirmação de que uma personalidade distinta só se obtém, como sempre, com a afirmação pública da sua “fala” (a redacção que é premiada com uma menção honrosa no concurso da Feira Mundial), com o desvendamento em si próprio dessa dimensão oculta dos adultos que é a sexualidade e com a consciência eufórica de que se é possuidor de um futuro próprio (é essa a descoberta que a criança faz entre os pavilhões da Feira Mundial).

 
A História aparece aqui como o cenário de um passado pessoal que, ao condicioná-lo, o constrói a seu modo. Por isso, a criança de Feira Mundial entende, por fim, que as pessoas são, antes do mais, resultado do profundo imbricamento da História com a história individual; ninguém em particular pode ser apontado como culpado da inconstância e do aventureirismo do seu pai, da amargura e do desencanto da sua mãe, da frustração e da fuga do seu irmão: cada um deles carrega apenas um destino resultante de circunstâncias, externas e internas, impossíveis - provavelmente - de dominar.

 
Como já era bem notório noutros romances de E. L. Doctorow, como Ragtime, Feira Mundial revela uma enorme sobriedade e elegância de estilo, assim como um admirável saber narrativo em encadear as situações e dar-lhes verosimilhança. Mas, considerando outros aspectos, é inegável que o romance fica bem aquém do que a anterior obra do autor permitia esperar. Admira, por exemplo, que, na sua estrutura, nada transpareça sobre as analogias metodológicas que existem entre a reconstrução do passado pessoal e a da História, nem, em particular, sobre a dimensão que, em qualquer delas, existe de ficção: é já hoje inadmissível um optimismo tão ingénuo sobre o papel da memória. Talvez, por isso, o romance permaneça quase sempre numa certa platitude insignificante que o torna monótono.

 
Publicado no Público em 1991.

 

Titulo: Feira Mundial
Autor: E. L. Doctorow
Tradução: Ana Barradas
Editor: Terramar
Ano: 1991
371 págs., € 13,11
 
 



Sem comentários: