sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

ORHAN PAMUK



A ÚNICA CONSOLAÇÃO

 
É costume afirmar-se que a Turquia é o país que faz a ponte entre o Ocidente e o Oriente. De facto, ao longo dos séculos, por boa ou má fortuna, tem-se reflectido, nas terras e nas gentes daquele país, essa situação de “lugar de passagem” entre duas civilizações. Mas, por isso mesmo, a Turquia tem também o estatuto - esse sim, sem sombra de dúvidas, nefasto para o seu povo – de país periférico para as duas civilizações e, por consequência, de ser mal conhecido e interpretado por ambos os lados (basta referir as morosas e muito questionadas negociações para a sua entrada na União Europeia e, por outro, os atentados e as acusações de “país traidor” que recebe dos movimentos e das posições islamitas mais radicais). Além disso, foi também esta situação de confluência que motivou, na história contemporânea da Turquia, um constante percurso sinuoso entre uma aproximação ao Ocidente e uma defesa intransigente de certos valores tradicionais e de uma matriz pró-oriental que, à primeira vista, parece ter gerado um problema de identidade cultural e nacional.
 
Tudo isto tem dado origem a que haja um significativo desconhecimento da cultura e da literatura turcas e tenha sido difícil a penetração dos seus autores e das suas obras nos circuitos internacionais da edição. Não admira, por conseguinte, que a literatura turca seja quase de todo desconhecida em Portugal, mesmo entre os grandes leitores. Segundo creio, para além de Nazim Hikmet e Yashar Kemal – as duas figuras patronais da literatura turca do séc. XX – poucos mais autores turcos foram traduzidos para português. Por isso, tem que ser louvado, antes do mais, o esforço da Ed. Presença em traduzir e publicar as obras de Orhan Pamuk (foi agora publicado o romance Os Jardins da Memória e antes já tinha publicado A Cidadela Branca), um dos raros autores turcos que é hoje lido e apreciado em todo o mundo.


Orhan Pamuk nasceu em Istambul, em 1952, e começou por estudar arquitectura e mais tarde jornalismo na Universidade daquela cidade (onde sempre tem vivido, para além de algumas temporadas em Nova Iorque). Foi no final da década de setenta que ganhou o reconhecimento literário nacional ao vencer, com o original que irá ser o seu primeiro romance, publicado só em 1983, o prémio literário de um dos mais conceituados jornais turcos, o “Milliyet”. Durante as décadas seguintes, publicou mais sete romances e um guião cinematográfico, ganhando com eles os principais prémios nacionais. Já com a tradução francesa do seu segundo romance, Sessiz Ev (com o título francês de La Maison du silence), ganhou o primeiro prémio internacional, o “Prix de la Découverte Européenne”; mas é com a tradução em inglês e em francês do seu terceiro (o que foi traduzido com o título A Cidadela Branca) e quarto romance (agora publicado em português e cuja tradução inglesa do título original é The Black Book) que Orhan Pamuk ganhou renome internacional, sendo traduzido para quase todas as línguas. Por fim, com o último romance, cujo título em inglês é My Name is Red, venceu o prestigiado “The International IMPAC Dublin Literary Award”, o prémio literário mais elevado em termos financeiros no espaço de língua inglesa, e cujas obras candidatas são propostas pelas bibliotecas públicas e nacionais de todo o mundo. Orhan Pamuk é hoje, com grande unanimidade, reconhecido como um autor fundamental da literatura contemporânea e, pelas características específicas da sua obra, um dos mais sérios candidatos ao Prémio Nobel.

 
Poucas vezes a leitura de uma obra de um autor pouco conhecido nos transmite a certeza que é, ou virá a ser, uma referência literária. Sucede isso, indubitavelmente, com Os Jardins da Memória. Como é bem referido no texto de contracapa da edição portuguesa, este romance é resultante de uma exaustiva reflexão sobre o problema da identidade. E, aspecto que nos parece interessante, não é de todo acidental que tenha irrompido num país como a Turquia que, por razões muito próprias, sofre, pelo menos à superfície da sua imagem, desse mesmo problema. Mas, saliente-se, a questão de fundo que atravessa este livro não é colocada em exclusivo ao nível nacional nem ao nível pessoal, mas sobre a questão da identidade entendida de uma forma ontológica: se quisermos apresentar o problema em termos de uma interrogação, não é tanto, por conseguinte, sobre “quem somos” mas sobre “o que somos” que se centra este romance.

 
A trama de Os Jardins da Memória é tão simples que se expõe em poucas linhas: é a história de um advogado de meia-idade que, de súbito e de forma inexplicável, constata que a sua mulher desapareceu e, com ela, o seu meio-irmão, um cronista de um jornal diário, muito apreciado e idolatrado, mas, ao mesmo tempo, polémico, e, por isso mesmo, resolve deambular, de uma forma quase alucinada, por Istambul em busca deles (e esta faceta de Os Jardins da Memória transmite-lhe outra característica importante: poucos romances se afirmam de forma tão nítida como o “romance de uma cidade”, como é este em relação à cidade de Istambul, dando dela uma imagem sombria e gelada, cheia de ruas estreitas e misteriosas, ladeadas de decrépitos prédios e lojas feéricas). A estrutura narrativa também, na sua aparência, é muito simples: os capítulos vão alternando entre a narração da busca da personagem principal e a reprodução das crónicas que o meio-irmão da sua mulher foi publicando, durante várias décadas, num jornal famoso (o tal “Millyet” já referido).

 
Saliente-se ainda, no respeitante aos seus aspectos formais e estéticos, que Os Jardins da Memória assenta em princípios que, para um leitor ocidental, poderão ser incómodos: é que, ao contrário do que sucede nas mais importantes narrativas ocidentais, não existe neste romance uma regra de contenção, de redução dos meios narrativos ao essencial para o desenvolvimento da acção, mas, pelo contrário, um gosto pela justaposição de elementos, pelo pormenor observado em minúcia, pelo encadeamento de histórias e narrativas derivativas, pela introdução de personagens e situações na aparência irrelevantes, num fluxo narrativo que parece incontrolável e avassalador. Quer isto dizer, que a matriz e a referência estética deste longo romance está nas narrativas tradicionais orientais (algumas delas, pouco conhecidas no Ocidente, relacionadas com a literatura religiosa islâmica) e, muito em particular, em As Mil e Uma Noites. Porém, não se julgue, tal como o leitor irá compreender ao longo da sua leitura, que esta proliferação de elementos é gratuita, estando, pelo contrário, em estreita articulação com a arquitectura do romance e sempre relacionada, directa ou indirectamente, com o seu tema central.

Como em qualquer romance policial – percebe-se que, de facto, é este, para Orhan Pamuk, o modelo fundamental para qualquer estrutura narrativa -, a personagem principal, o advogado Galip, através das suas deambulações ou através da análise das crónicas (reproduzidas no livro) do meio-irmão da sua mulher, procura, como forma de compreender as razões que levaram ao desaparecimento de ambos, tipificar a “identidade” como substrato de motivações e comportamentos. Assim, como se rasgasse as camadas sucessivas de um fruto até ao caroço, Os Jardins da Memória vai dissecando a dicotomia Oriente/Ocidente, a base histórico-cultural da nação (saliente-se que, no respeitante a este subtema, há duas crónicas em forma de parábola, absolutamente geniais e inesquecíveis, uma, sobre os efeitos de um hipotético desaparecimento das águas do Bósforo, outra, sobre um fabricante obsessivo de manequins), a memória como depositária de um passado identificador ou como recriação em parte fictícia, devido ao contacto com o Outro, a relação das imagens que se tem sobre si (concebidas pelo próprio ou pelos outros), como desdobramento ocultante, e a eventual realidade de cada um, o espaço físico (a cidade, a casa) como elemento de suporte para a confirmação da identidade, o rosto como mapa de legibilidade de um ser secreto, etc., etc.. De certo modo, o que Galip vai percebendo, ao longo da sua peregrinação, é que no final encontrará decerto o vazio e que, por isso mesmo, a sua própria identificação reside apenas na leitura/interpretação do seu percurso até esse fim e que, por conseguinte, só será inteligível pelos outros através da escrita e da sua explicitação por “histórias” que seduzam os outros e lhes façam compreender os meandros desse mesmo percurso.

 
A segunda parte de Os Jardins da Memória trata, por isso, do acto de escrever e dos seus limites ou, por outras palavras, dos seus efeitos sobre o leitor. De facto, se qualquer identificação possível (“o que somos”) só transparece na produção narrativa (“o contar histórias”) e apenas ganha sentido dando-a a conhecer (publicando-a), esta hipótese acarreta duas consequências importantes: por um lado, cria uma relação, no fundamental, ética, entre quem tem “voz” (isto é, tem capacidades verbais para “contar histórias”) e quem não tem, e, por outro, sobre os efeitos da sedução de quem a ouve (isto é, de quem lê as referidas “histórias”). Para expor toda a complexidade do tema, o autor concebe um artifício habilmente conseguido: a personagem principal, de um modo gradual, “substitui” o cronista meio-irmão da mulher, começando não só a redigir crónicas em seu nome, mas também a escutar os telefonemas intermináveis de um leitor que, em consequência de se ter seduzido (saliente-se que Orhan Pamuk considera que o único leitor é aquele que está inteiramente seduzido e, por conseguinte, de todo “transportado” para o que lê) e acreditar, até ao limite do absurdo, no que é escrito nessas crónicas, vê destruída, a todos os níveis, a sua vida. Quer isto dizer, que a “escrita”, como consolação possível para uma existência vazia de identidade, é também um perigoso jogo de ilusões (chamo aqui atenção para um dos vários “exercícios polissémicos” que este romance está repleto, e que é muito difícil de captar pelo leitor português, como é o facto do objecto físico de busca da personagem principal – a sua mulher – se chamar “Ruya” que, em turco, quer dizer “ilusão/sonho”) que pode fantasmagorizar por completo quem a redige e quem a lê.

 
Por fim, duas últimas notas à edição portuguesa desta obra. Pessoalmente, e por razões compreensíveis, sou contra a substituição da tradução de títulos originais por outros que, de certo modo, não correspondem à vontade primordial do autor. Espero, por isso, que haja razões editoriais significativas que justifiquem alterar o título original (que deveria ser O Livro Negro) para Os Jardins da Memória (à parte, saliente-se, este título ser bem escolhido, uma vez é uma das imagens recorrentes no romance e, de algum modo, caracterizar o seu tema central). Além disso, e sem questionar a qualidade geral da tradução, creio que deveria ser um princípio indiscutível a indicação da língua cuja versão foi utilizada para a realização da tradução. Que se saiba, o tradutor não domina o turco (e isto não põe em cheque a competência intelectual nem as suas qualidades de tradutor, uma vez que é bem conhecida, e com provas indiscutíveis, a craveira, nestes domínios, de Miguel Serras Pereira) e, por isso, creio que deveria vir referida na edição a língua de partida utilizada. Tanto mais que, como é óbvio, não é culpa da editora que não exista em Portugal formação em Línguas e Culturas orientais capaz de transmitir as competências necessárias para traduzir uma obra desta envergadura. Por isso mesmo, como já foi referido, e com toda a sinceridade, deve ser reconhecido o esforço cultural da Ed. Presença em se abalançar nesta edição, uma vez que mais vale ter esta obra no mercado, mesmo traduzindo-a a partir de uma versão que não é a original, do que esperar, paulatinamente, que haja a referida formação no nosso país para a realizar.

 
Pulicado no Público em 2003.

 

 
Título: Os Jardins da Memória
Autor: Orhan Pamuk
Tradução: Miguel Serras Pereira
Editor: Editorial Presença
450 págs., € 22,45

 
 


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