segunda-feira, 2 de maio de 2016

GORE VIDAL 1

 
 
 

OS PILARES DO PODER
 
A mais óbvia constatação, que se pode fazer sobre o escritor Gore Vidal, é que é hoje considerado - mesmo pelos seus detractores - como uma respeitada e conceituada instituição cultural americana. Esta situação deve-se à globalidade da acção sociocultural deste homem que, na sua essência, se focaliza em três frentes: a intervenção política (que se tem caracterizado por um razoável insucesso: o melhor resultado que obteve foi, na década de oitenta, um segundo lugar na eleição para senador pela Califórnia...; é necessário, no entanto, assinalar que Gore Vidal é encarado, pelo menos, por parte dos sectores mais liberais do Partido Democrático, como uma espécie de “consciência crítica” da sociedade americana); a participação, sempre pautada por uma ambivalência de amor/ódio, no universo do audiovisual (recordo que Gore Vidal foi actor, argumentista de filmes e séries televisivas e que, principalmente, foi comentador político regular - sempre rodeado de tremendas polémicas - de alguns canais de televisão); e, “last but not least”, a criação literária.
 
Como escritor, pode-se dizer que Gore Vidal, de certo modo, instituiu na literatura americana um subgénero narrativo: o romance político, querendo, por esta designação, definir um tipo de ficção que não só pretende analisar as atitudes comportamentais das figuras que circulam na órbita do poder, mas, sobretudo, que procura compreender os fundamentos da “vontade de poder” que motiva essas figuras. Pode-se, por isso, também afirmar, com alguma ironia, que a obra de Gore Vidal assume o percurso antitético da dos escritores “regionalistas” (na acepção que esta expressão tem no quadro da literatura americana): partindo de uma temática muitas vezes universalista, ela visa sempre ter como interlocutor principal aquelas entidades, ao mesmo tempo contraditoriamente vagas e reais, que povoam os labirínticos corredores burocráticos de Washington, D.C. (o título do romance até hoje mais conseguido de Gore Vidal) e que se deleitam a construir ou a definir os contornos de impérios e a determinar com os seus gestos e frases sibilinos o áspero quotidiano da população mundial.
 
O que, de alguma maneira, resgata a obra de Gore Vidal para a universalidade, são dois princípios bem claros e que, de certo modo, fundamentam o seu liberalismo radical: a primeira, é que o poder político é, na sua essência, uma luta de interesses que se traduz numa decisão individual e, por conseguinte, idêntico em qualquer parte do mundo, distinguindo-se, em exclusivo, por uma graduação qualitativa e quantitativa de soberania; a segunda, é que a existência, no contexto da sua sociabilidade, assume sempre a forma de uma relação de poder.
 
É evidente que, para esta concepção do poder e da existência, contribuiu, de forma decisiva, a sua origem e a formação que recebeu desde o berço: recorde-se que Gore Vidal, hoje com setenta e cinco anos, pertence a uma família que, tradicionalmente, se mantem nas proximidades do poder político americano (desde o seu avô materno, um lendário e poderoso senador, com quem Gore Vidal viveu parte da adolescência e para quem leu - porque ele era cego - inúmeras obras clássicas da sua biblioteca, até Al Gore, seu primo afastado, e actual candidato democrático à presidência americana e Vice-Presidente dos Estados Unidos, passando pela família Kennedy, com quem a sua mantem relações de parentesco por afinidade) e, por conseguinte, é natural que conheça intimamente a forma como se arquitecta o poder político e aquilo que motiva as suas decisões.
 
Gore Vidal iniciou muito cedo a sua carreira literária: ainda com vinte e um anos publicou o seu primeiro romance, Williwaw, baseado na sua experiência militar durante a II Guerra Mundial. Mas é com o seu terceiro romance, A Cidade e o Pilar, centrado numa temática homossexual e redigido de uma forma estilística inovadora, que obteve notoriedade, dividindo a crítica e fazendo erguer uma auréola de escândalo em seu redor. Contudo, os seus romances seguintes foram mal recebidos e o próprio Gore Vidal não os considerou de todo satisfatórios; por isso, durante a década de cinquenta, abdicou da produção romanesca, dedicando-se em exclusivo ao guionismo, cinematográfico e televisivo, e à dramaturgia. Só nos anos sessenta, Gore Vidal voltou à ficção, começando então o seu período mais profícuo: recorde-se o ciclo sobre a história americana, iniciado com o já referido Washington, D.C., o ciclo dos romances históricos (lembro Juliano e Criação), ou ainda o conjunto de obras, a que o próprio autor chama de “invenções” narrativas, que inclui, entre outros, Myra Breckinridge, Myron, Duluth e Em Directo do Calvário (à excepção de Williwaw, todos os romances citados estão editados no nosso país).
 
Numa visão de síntese sobre a obra de Gore Vidal, pode afirmar-se que o seu trabalho literário sempre procurou compreender a estrutura de dois pilares fundamentais do poder político: por um lado, a mitologia (tanto na concepção junguiana da palavra, como na sua formulação mais abrangente, de molde a integrar os arquétipos gerados pela poderosa produção audiovisual), entendida como um quadro de referência que, de forma sistemática, orienta o “gesto político”, por outro, a sexualidade, encarando a sua plena satisfação como a forma mais estruturalmente gratificante de compensação existencial e, por conseguinte, como objectivo último a atingir pela vontade de poder.
 
Bem exemplar de toda esta concepção da existência e do poder é o último romance de Gore Vidal, O Instituto Smithsonian, agora publicado no nosso país. Convém, antes do mais, referir que o Instituto Smithsonian é um importante instituição científica americana, sediada em Washington, mas com instalações em outras cidades, como New York, resultante do legado de James Smithson, um cientista escocês que, no início do século passado, resolveu doar a sua fortuna ao povo americano para que construa uma instituição cultural, e que hoje, com mais de cento e cinquenta anos, é considerada como o maior complexo museológico do mundo, já que é composto por dezasseis museus (com mais de 140 milhões de peças), um Zoo e quatro centros de investigação (e deve ser aqui feito um reparo à edição portuguesa desta obra: O Instituto Smithsonian constitui-se como um verdadeiro repertório de referências à história e à cultura americanas, algumas delas muito pouco conhecidas para um leitor não-americano, e, por conseguinte, é muito insensato, e até um pouco criminoso, que uma edição, como é o caso da portuguesa, não tenha notas explicativas que contextualizem essas referências).
 
A trama desta obra de Gore Vidal é complexa, partindo, no entanto, de uma ideia genialmente simples: um adolescente sobredotado, com capacidade de “visualizar” alguns dos efeitos práticos das equações matemáticas da teoria da relatividade, é introduzido, na Páscoa de 1939, no Instituto Smithsonian e aí, ao “ver” que se está à beira de um conflito militar muito mortífero (e onde ele próprio descobre que irá perder a vida), tentará, por meios científicos, viajar no tempo e modificar a história para que os Estados Unidos não se envolvam nessa guerra e, em consequência, não aviltem os seus valores fundamentais ao tornar-se numa potência imperial. Aproveitando uma fórmula retirada da literatura infantil clássica (em que os bonecos - aqui de cera e integrando quadros expositivos que narram ou exemplificam situações históricas - ganham vida quando o mundo em seu redor “adormece”), Gore Vidal coloca a sua personagem principal, T. (que é uma recriação literária de Jimmie Trimble, o seu jovem amante que morreu, tal como a personagem do romance, na batalha de Iwo Jima), em contacto - e até a relacionar-se em termos sexuais - com inúmeras figuras da história e da cultura americanas (desde Washington, Lincoln e os Roosevelt até Lindbergh, Einstein e Oppenheimer, passando - e talvez não seja tão assombroso como pode parecer à primeira vista - por Walt Disney) que contribuíram, pela positiva ou pela negativa, para a evolução histórica dos Estados Unidos e para aquilo que hoje é.
 
Esta fórmula permitiu a Gore Vidal realçar de novo aquilo que é uma sua peculiar obsessão: a capacidade individual de intervir no percurso histórico. Quando T., ao conseguir “queimar” diversas etapas científicas, contribui dessa forma para antecipar a construção da bomba atómica, ou quando vai falar com o Presidente Wilson, tentando pressioná-lo, pela denúncia de um escândalo sexual, para que se decida pela não intervenção dos Estados Unidos na I Guerra Mundial, sabe que está a agir sobre o futuro da humanidade, alterando o destino de milhões de pessoas, tornando-se assim bem perceptível como um simples gesto político pode ter a possibilidade de originar uma “outra” História. Por outro lado, o autor deve também ter-se deleitado como um exercício literário que lhe é muito gratificante: o de recriar diversas figuras históricas que se confrontam, no quadro das suas mentalidades específicas, com as decisões políticas mais determinantes do nosso século. Nesse aspecto, a situação romanesca mais conseguida de O Instituto Smithsonian é, sem dúvida, a da assembleia de todos os presidentes americanos, em que se discute qual deve ser a posição dos Estados Unidos perante o conflito mundial que se avizinha, com o intuito de transmitir uma posição conjunta ao Presidente Roosevelt.
 
Em O Instituto Smithsonian, Gore Vidal arquitecta uma espécie de súmula das suas diversas opções literárias, conjugando ficção científica com romance histórico e, ao mesmo tempo, com a experimentação narrativa já testada nas suas referidas “invenções” (e que muito deve ao trabalho de escritores da chamada geração pósmoderna americana, como John Barth e Donald Barthelme). Porém, o romance está repleto de volutas narrativas, de inflexões na trama para a introdução de novas figuras históricas, levando muitas vezes o seu sentido a perder-se e a esgarçar-se aquilo que parece ser o seu fio principal: o de apresentar, de uma forma romanesca, uma concepção da história que permita à humanidade - e, muito em particular, aos Estados Unidos - perceber quais são as opções fundamentais a efectuar para que a presente civilização não se encaminhe para uma catástrofe apocalíptica.
 
 Publicado no Público em 2000.                                                                  
 
Título: O Instituto Smithsonian
Autor: Gore Vidal
Tradução: Sandra Oliveira
Editor: Editorial Notícias
Ano: 2000
206 págs., € 12,90
 


        


Sem comentários: