segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

MALCOLM LOWRY

 
 
OS ÚLTIMOS CARGUEIROS
 
 O romance Ultramarina de Malcolm Lowry pertence a uma literatura marítima que se centra numa das figuras/metáforas mais apaixonadamente exploradas desde os finais do século XIX: o cargueiro.
 
Desde sempre entendido como uma representação material da aventura, o cargueiro era a concreta hipótese de viver a poesia do longínquo e do exótico. Os modernistas, e, em particular, os futuristas, encaravam-no como o símbolo das possibilidades mundializantes que a técnica concedia ao homem. Na obra de Joseph Conrad (uma sistemática referência neste Ultramarina), o cargueiro torna-se o lugar privilegiado para um confronto radical entre o carácter e a adversidade, entre o Homem e o Mal. Mas todo este ciclo de certo modo se encerra com alguns textos de Jack Kerouac da década de cinquenta (e que Ultramarina também prenuncia), onde se revela que a aparente dimensão de aventura do cargueiro se resume a uma brutal precaridade de quotidiano, feita de cansaço, monotonia e carência.
 
Neste livro de Malcolm Lowry, o cargueiro, como figura literária central, é o “transporte” que proporciona um conjunto de actos iniciáticos: primeiro, porque é ele que satisfaz a exigência existencial de dissolução do indivíduo na Natureza, isto é, na infinitude do mar, única imersão que permite compreender profundamente o específico lugar do Homem na hierarquia do universo; segundo, porque as exigências duríssimas da vida do mar servirão como veículo de integração social ou como meio de descoberta do outro.
 
Toda a estrutura romanesca de Ultramarina se desenvolve em redor das atitudes ambivalentes que o marinheiro Dana Hilliot, a personagem principal, tem face a essas provas rituais por que resolveu passar. Porque se a viagem no cargueiro lhe permite o mergulho cósmico no mar e na noite, que lhe transforma o olhar, também lhe provoca todo um conjunto de carências que o impele a perder-se nos diversos portos, nesse universo comum de putrefacções, fome e sífilis, onde atraca. O porto torna-se assim o lugar do Mal (figura que é uma notória referência à obra conradiana), esse espaço nocturno de álcool e comércio sexual onde, procurando abandonar os fantasmas da sua adolescência, Dana Hilliot se arrisca.
 
Por outro lado, este roteiro de iniciação entre o Belo e o Horror cruza-se com um difícil processo de descoberta do outro. Um outro que, para Dana Hilliot, é um bifronte (feito de Janet, a amada que deixou em Liverpool, e Andy, o cozinheiro, por quem se sente fascinado, mas que tem, perante ele, uma atitude sistemática de desprezo e rejeição), exigindo vias de aproximação dolorosamente antagónicas: uma feita de actos gratuitos de heroísmo e de uma aprendizagem sexual realizada através da prostituição, forma de se afirmar numa comunidade de homens e de granjear o respeito e a admiração de Andy, e outra estabelecida na fidelidade à palavra fundadora da sua relação com Janet que não lhe permite maculá-la com um acto sexual de circunstância.
 
Este simples (e frágil) quadro de conflitos deixa-nos perceber que Ultramarina é um romance de formação. Mas é esta tipificação que nos revela aquilo que, já neste romance, é fundamental para Malcolm Lowry: a certeza de que todo o processo de afirmação existencial é um mero ordenamento de um conjunto de impulsos, estímulos, referências, enfim, de sinais que a névoa da memória associa até estabelecer um código pessoal, identificante e transmissível. A obra romanesca torna-se, assim, um “work in progress”, a representação material da elaboração desse código.
 
Ultramarina é, paralelamente, em estritos termos literários, uma obra onde se afina a intensa musicalidade de um estilo que atinge o seu apogeu nesse romance único que é Debaixo do Vulcão - estrela que transforma todas as restantes obras de Malcolm Lowry em seus meros satélites
.
Pelas suas características estilísticas, onde se associa desde a gíria marítima a formas eruditas de discurso, este romance levanta notórias dificuldades de tradução que Fernanda Finto Rodrigues, com a sua longa experiência profissional, consegue resolver, na generalidade dos casos, de uma forma equilibrada.
 
Publicado no Expresso em 1986.
 
 
Título: Ultramarina
Autor: Malcolm Lowry
Tradutor: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1986
261 págs., € 5,05
 
 



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