terça-feira, 27 de junho de 2017

SAMUEL BECKETT

 
 
 

A IMPRECAÇÃO CONTRA O TEMPO

 Uma das particularidades mais salientes da obra de Samuel Beckett, uma das mais decisivas para perceber como o homem deste século se assume em termos ontológicos, é que os seus textos (peças, romances, narrativas, poemas) não devem ser encarados de forma autónoma: na sua diversidade, eles são a reposição de uma mesma e contínua angústia metafísica, um linguajar de uma única fala. Por isso, torna-se muito difícil escrever especificamente deste Pioravante marche agora editado.

Uma das questões determinantes na obra de Samuel Beckett é a sua radicalidade ética e estética. De facto, os textos deste autor partem do princípio de que quase nada existe antes deles. Talvez se vislumbrem ténues vestígios de um corpo, penumbras de um lugar, restos de uma entidade. Mas também muito pouco existe depois deles. O receptor não passa de uma testemunha anónima de uma fala que existe por si e que não procura nada nem ninguém. Na linha do tempo, esta fala mantém-se na expectativa. De uma difusa compreensão que há-de vir, de um lampejo que, em definitivo, cegue.

 
A esta radicalidade estética ajusta-se um posicionamento ético que entende a literatura como uma espécie de emanação natural do absurdo metafísico que fundamenta a existência humana: a consciência da morte. Mas esta não é só entendida na sua dimensão física, mas reflexo maior da absoluta incomunicabilidade das consciências. A vida é urna simples viagem vertiginosa para a desagregação, uma paciente decomposição das ilusões até se atingir toda a opacidade do outro e se ficar com a certeza residual de um corpo, de um lugar. E a literatura é a única arma, romba e frágil, que se pode erguer contra o tempo. Esta sua exclusiva tarefa, obriga-a a descarnar-se de atributos, a revelar-se no osso da palavra.

 
Não há, no entanto, dúvidas em Samuel Beckett sobre qual o resultado desse duelo entre a literatura e o tempo. Mas esse resultado em nada alterará o devir da literatura: a fala, e isto basta para infinitamente a justificar, é a expressão mínima de um organismo no confronto inglório contra o tempo, a imprecação possível perante a brutal injustiça da criação divina.

 
Sob o aparente exercício da lógica de Pioravante marche, traduzido de uma forma provocatória e polémica (mas correcta) por Miguel Esteves Cardoso, sob este discurso que, em coerência, se contradiz, que se limita à síncope curta da palavra, vindo de um indefinível narrador, perseguindo informes personagens que corporizam interrogações essenciais, passa uma torrente subterrânea que, de um modo desesperado, “não sai”, mas que a todos nós referencia.

 

Publicado na Ler em 1988.

(Foto do Autor de Jane Bown).

 

 

Título: Pioravante Marche
Autor: Samuel Beckett
Tradutor: Miguel Esteves Cardoso
Editor: Gradiva
Ano: 1988
87 págs., esg.
 





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