quinta-feira, 5 de outubro de 2017

ERNST JÜNGER

 



A ARTE COMO MAUSOLÉU

 

Para lá da inevitável inquietação metafísica, aquilo que se espera de uma pessoa, que viveu de forma tão desabrigada como Ernst Jünger, é que não sinta necessidade de “preparar a sua morte”. De facto, era pouco previsível que alguém como ele, que sentiu os efeitos das “tempestades de aço” disseminados pela pele, que ergueu “falésias de mármore” à ascensão do nazismo, que foi obrigado a conviver com a morte na sua imposição mais brutal e anónima e que, por fim, se resignou, há mais de quarenta anos, a uma contemplativa “classificação” da natureza e dos homens, tenha sentido necessidade, aos oitenta e seis anos, de escrever um romance como O Problema de Aladino.

 
Mas este espanto (e irritação) inicial vai-se atenuando, tendo em consideração o modo como Ernst Jünger situa a morte no quadro dos fenómenos naturais. Se, desde Tempestades de Aço (In Stahlgewittern), Ernst Jünger considera a morte (e até mesmo a guerra) como a forma mais despojada e intensa da Natureza em nós, no Diário vai mais longe, ao entender que é a necessidade absurda de exorcizar a morte (e, paralelamente, o desejo de “mais força” na guerra) que tem provocado, no processo civilizacional, uma supremacia abusiva e descaracterizadora da técnica. Foi esta constatação, associada a outras rejeições da actual civilização (como, por exemplo, o papel dado às doutrinas e ao poder político, incluindo o estatuto totalizante do Estado moderno), que lhe abriu a via para um posicionamento contemplativo e reflexivo, abdicando de qualquer outro tipo de acção, e que, por conseguinte, está na base da maior parte da sua produção literária. Ora, é neste contexto que se tem de compreender o sentido de O Problema de Aladino.

 
O romance é constituído por um monólogo relativamente longo de um homem que percebeu que o seu “património” (isto é, as ligações à sua terra e aos seus ancestrais) é, cada vez mais, pura memória e que, por isso, desaparecerá com ele. E tal sucede porque a sociedade perdeu o sentido da morte e, em particular, da inumação, já que é esta que cria um vínculo à terra e permite, através da arte funerária, a perenização simbólica da morte. É a consciência deste facto que o leva a conceber e a realizar, com a ajuda financeira de um banqueiro, o projecto de criar uma necrópole universal na Anatólia, onde se garanta a perpetuidade do mausoléu. Por fim, o homem não só vai enriquecer imenso com este projecto, como consegue desviar o caminho da civilização com a sua utopia.

 
Mas não é apenas este “sonho” irónico que nos leva a afirmar que, com este livro, Ernst Jünger “prepara a sua morte”. É o seu final, directamente relacionado com o título do romance, que torna mais explícito o sentido último de O Problema de Aladino. O mago da lâmpada de Aladino não é só o instrumento absoluto do seu desejo; é a imagem soberana e imortal do próprio Aladino. Assim, quando o personagem principal recebe uma missiva de Phares (o seu “mago”) a oferecer os seus préstimos, percebe que este poderá concluir de forma ainda mais perfeita o objectivo da sua própria vida, e que, deste modo, “livre do seu fardo”, poderá recolher-se no Hotel das Águias (a morte?).

 
Compreende-se então que O Problema de Aladino é o fecho de abóbada da obra de Ernst Jünger e que este se encontra também preparado para se retirar para o Hotel das Aguias: a sua obra (Phares) continuará, como um “duplo” perfeito, o destino da sua vida. E, por outro lado, com este romance, fica também bem claro qual o objectivo de toda a produção literária do autor: a de perpetuar - como um mausoléu - contra a previsível evolução da civilização, um tempo e um modo de estar.

 

Publicado no Expresso em 1989.

 

 
Título: O Problema de Aladino
Autor: Ernst Jünger
Tradutor: Ana Cristina Pontes
Editor: Cotovia
Ano: 1989
123 págs., € 10,10
 


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