terça-feira, 28 de maio de 2019

DANY LAFERRIÈRE



“EVEN WHEN YOU ARRIVE, YOU’RE GOING BACK AND FORTH”

A Zadie Smith, e ao seu romance “White Teeth”, donde retirei esta frase para o título.

 Os estudos pós-colonialistas já demonstraram, por diversas vias, os motivos que levam a que as literaturas das regiões que estiveram sob o jugo colonial até meados do séc. XX sejam, como se sabe, pouco conhecidas e não tenham conseguido atingir uma legítima projecção internacional.

Habitualmente, inclui-se nesta visão as literaturas das Caraíbas (ou Antilhas), não só as que foram produzidas nos diversos tipos de crioulos, mas também as que foram e são escritas nas línguas dos países colonizadores (o inglês, o espanhol, o francês e o neerlandês), que se tornaram, após as independências, línguas nacionais, e com um alcance mais global.

No entanto, pode constatar-se, utilizando os indicadores disponíveis (os Prémio Nobel concedidos, por exemplo…) que não são poucos os autores naturais das Caraíbas com projecção internacional. Dir-se-á que este facto deriva em grande parte da língua utilizada por estes autores ser o francês e o inglês e de possuírem, antes do mais, a nacionalidade francesa e britânica. Mas, de qualquer forma, é indiscutível que esses autores nunca perderam as profundas ligações que têm aos seus locais de origem e que essas ligações são bem explícitas nas suas obras. E o número de autores com estas características é tão significativo que se tornaria fastidioso estar aqui a enuncia-los.

Na minha opinião, as considerações do pós-colonialismo ganham muito mais sentido e ressonância se procurar perceber como a realidade “material” afectou a produção discursiva da literatura, mas também de outras manifestações artísticas, das Caraíbas. Basta um superficial “olhar” pela situação social, económica e política que a região das Caraíbas viveu (e vive) nas últimas décadas para perceber a dimensão e a profundidade das sequelas que lá deixaram o colonialismo e o neo-colonialismo. A violência social, a miséria crónica da maioria da população, o desrespeito completo pelos mais elementares direitos humanos, a permanência de um Estado, seja em modelos ditatoriais seja em modelos ditos “democráticos”, que apenas existe para satisfazer a avidez cega de “famílias” já per si ricas e poderosas, fazem, desta região, um dos palcos mais sinistros da história contemporânea. E não vale a pena assinalar aqui e ali uma ou outra excepção, pois esses casos só vêm tornar ainda mais gritante a regra geral: e essa é que os Estados, nesta região, são encarados pela grande maioria da população como “gangs” de criminosos a evitar e não como entidades constituídas para proteger e promover o bem-estar da comunidade.

As Caraíbas, pela mais obscena das razões, tem sido objecto do interesse cíclico da comunicação social europeia e americana: a sua voraz necessidade de sangue para inebriar audiências tem feito com que “corra” a noticiar as crónicas intempéries (terramotos, inundações, tempestades tropicais, etc.) que assolam esta região, provocando milhares e milhares de mortos. Mas raramente essa mesma comunicação social se interessa por entender e explicar os “reais” motivos dessas destruições de vidas humanas e do ambiente, que, obviamente, não estão tanto nas catástrofes naturais, mas mais no profundo subdesenvolvimento destas sociedades, na miséria em que está mergulhada a enorme maioria da população e na incapacidade de “responder” de forma cabal a essas calamidades.

Ora, toda esta situação, naturalmente, determinou, não tanto a qualidade ou a quantidade da produção literária e artística, mas, em particular, o modo como se processa a produção discursiva nestas manifestações (veja-se, a título de exemplo, a relevância que tem nas Antilhas a “pintura naïf” e como os artistas contemporâneos têm vindo a reequacionar este património); e, consequentemente, obriga a procurar entender de outra forma esses discursos, abdicando de abordagens assentes em modelos canónicos ocidentais.

Estas constatações resultam da minha leitura de uma obra de um escritor do Haiti (o romance intitula-se “L’Énigme du Retour”, e o autor é Dany Laferrière), e de perceber que pouco se sabe da realidade deste país, e muito menos da sua literatura, principalmente fora do espaço francófono. E este facto levou-me, mais uma vez, a reflectir sobre os mecanismos culturais que motivam o interesse pela leitura de uma obra literária (e a quase inevitável propensão “nacionalista” com que se fazem essas opções) ou ainda sobre a fundamentação do modelo com que se constrói a história literária (mais assente no impacto e/ou projecção de uma obra ou de um autor, isto é, em critérios, em boa parte extraliterários, do que em valores intrínsecos à própria obra).

Lembro que a história contemporânea do Haiti dá-lhe certas peculiaridades que o destacam dos restantes países da região e da América Latina, como, por exemplo, ser, depois dos Estados Unidos, a primeira colónia americana a tornar-se independente, ter “nascido” de uma revolta de escravos e ser, provavelmente, por isso mesmo, um dos primeiros Estados a abolir a escravatura. Mas, durante o restante séc. XIX e todo o séc. XX, o que caracterizou a vida política deste país foi a permanente instabilidade, com inúmeras rebeliões, conflitos rácicos entre mulatos e negros, golpes de Estado militares e guerras com a vizinha República Dominicana (que “motivou” uma ocupação dos Estados Unidos). Lamentavelmente, a única excepção nesta constante instabilidade foi no período em que o poder foi ocupado por duas das ditaduras mais brutais e sangrentas do continente americano: os Duvalier, pai e filho (os famigerados “Papa Doc” e “Baby Doc”), que se mantiveram no poder durante cerca de trinta anos, suportados por milícias e “esquadrões da morte” (os famigerados “Tonton Macoute”, que se mantiveram no “activo”, mesmo depois do fim das ditaduras dos Duvalier), objectivamente acusados de vários massacres de populações civis e de oposicionistas. Nos últimos trinta anos, depois da saída do poder, em 1987, dos Duvalier, o Haiti voltou de novo à ininterrupta instabilidade política, transformando-se cada vez mais num “protectorado” dos Estados Unidos, com este país a interferir permanentemente no “caos” da sua política interna.

 É esta história, associada a uma endémica corrupção e a pilhagens constantes das riquezas públicas por parte das famílias próximas do poder político, que justifica o gravíssimo subdesenvolvimento do Haiti, cuja maioria da população vive esmagada pela penúria e pela fome. Os indicadores de desenvolvimento socio-económico e cultural deste país, apresentados pelos organismos internacionais, comprovam, em todos os aspectos, que ele se encontra numa enorme fragilidade, sendo um dos países mais subdesenvolvidos do globo. Hoje, o Haiti subsiste à custa da assistência pública internacional; mas, até nessa perspectiva, a situação é dramática, pois muitas dessas entidades, com o seu enorme exército de técnicos e “especialistas”, vivem, como os próprios haitianos mais esclarecidos o afirmam, de forma parasitária em redor da situação de carência de toda a ordem das populações, sem, no entanto, alterar de forma eficaz a presente situação.

Com este cenário, não admira que os haitianos se vejam obrigados, desde que tenham meios para o fazer, a uma crónica emigração, incluindo, naturalmente, as suas elites culturais que se sentem em absoluto incapazes de sobreviver no seu país, acossadas pela miséria circundante e por bandos de assassinos. E, integrando esta elite, obviamente os seus escritores.

Ora, tendo em conta tão precárias condições de subsistência, não se pode afirmar que a literatura haitiana tenha um valor displicente. Pelo contrário, pode dizer-se que é, sem sombra de dúvida, uma das mais florescentes das Caraíbas. Porém, como se percebe, uma boa parte dos autores mais reconhecidos vive no exterior do Haiti (em França, no Canadá e nos Estados Unidos) e escreve em francês ou, em menor grau, em inglês. De facto, mesmo não sendo língua oficial (essas línguas são o crioulo haitiano, falado por toda a população, e o francês, falado apenas por cerca de metade dela), o inglês, decorrente da enorme diáspora para os Estados Unidos e Canadá, e ainda, possivelmente, como consequência secundária do ascendente dos Estados Unidos na vida pública haitiana, tem sido utilizado por alguns escritores relevantes, como é o caso de Edwidge Danticat (n.1969), uma narradora radicada nos Estados Unidos, que tem obtido o reconhecimento da crítica e do público (recordo que ganhou, entre muitos outros prémios e consagrações, o prestigiadíssimo Prémio Neustadt, em 2017, para o conjunto da sua obra).      

Quanto aos autores em língua francesa, destaco os nomes de Jacques Roumain (1907-1944), militante comunista e autor de um dos romances essenciais (“Les Gouverneurs de la rosée”) da literatura haitiana, René Depestre (n. 1926), principalmente reconhecido como poeta, mas que também é um importante romancista e ensaísta, Frenkétienne (n. 1936), poeta e dramaturgo, além de pintor e músico, o magnífico e malogrado romancista Jacques Stephen Alexis (1922-1961), Jean Métellus (1937-2014), também reconhecido como poeta, Yannick Lahens (n. 1953), Louis-Philippe Dalembert (n.1962) e o já referido Dany Laferrière (n.1953).

Este autor, exilado em Montreal desde os anos setenta, já com mais de duas dezenas de títulos publicados, adquiriu, desde a edição do seu primeiro romance (com o saboroso título de “Comment faire l’amour avec un nègre sans se fatiguer”), em meados da década seguinte ao início do seu exílio, um reconhecido sucesso tanto no Canadá como em França, logrando vários prémios (entre eles, o Prémio Medicis com este romance que agora li, “L’Enigme du retour”) e doutoramentos “honoris causa”, concedidos por universidades francesas, canadianas e americanas. A coroar este percurso literário, foi eleito para a Academia Francesa em 2013, sendo o segundo membro desta Academia a não ter a nacionalidade francesa (o outro foi Julien Green). Em resumo, Dany Laferrière é hoje considerado como um dos mais importantes autores da francofonia.

Uma característica inteiramente assumida na obra de Dany Laferrière é o seu caracter autobiográfico. É, por isso, compreensível que a sua obra se centre na temática do exílio, da situação dos exilados nos países de acolhimento e da sua relação com o país de origem. Mas, aceitando o pressuposto que a autobiografia é um registo convencionado, o autor estabelece uma constante dialéctica com a memória, abrindo-se dessa forma à autoficção.

Pode, assim, afirmar-se que, ao confluir na mesma entidade a figura de autor e de narrador, há a intenção, por parte de Dany Laferrière, de questionar a própria figura do autor, procurando “iludir” ou “apagar” a personagem real, concreta, com a nova entidade criada: o autor pretende perenizar nesta figura do narrador/autor a sua própria imagem.

Ora, é neste contexto que “L’Enigme du retour” funciona como uma espécie de culminar de toda a sua obra ou, pelo menos, como uma peça-chave de um percurso literário. E, talvez por isso, tenha sido tão bem recebida no mundo literário de língua francesa.

A trama do romance é, na aparência, muito simples e escreve-se em duas linhas: o narrador/autor recebe, a certo momento da sua vida, um telefonema a informá-lo de que o seu pai morreu; e percebe que isso é um “ponto de ruptura” que o obriga a contextualizar o seu passado e o seu percurso. Para isso, sente necessidade de entender essa figura paterna cuja morte lhe foi anunciada e que ele mal conheceu e, com ela, o Haiti da sua infância e adolescência.

Mas para perceber as “repercussões” desta decisão (e são essas “repercussões” que vão constituir a componente estrutural do romance), tem que se explicar que este pai, rigorosamente homónimo do narrador/autor, foi obrigado a fugir do país, por temer pela sua vida, em meados da metade da década de cinquenta, para os Estados Unidos, em consequência da sua oposição ao regime de “Papa Doc”; vinte anos depois, pelas mesmas razões, o filho, o narrador/autor, foge também do Haiti, para um exílio no Canadá, agora receando os Tonton Macoute de “Baby Doc”. Entre pai e filho (pois o pai fora obrigado a fugir quando Dany Laferrière tinha apenas quatro anos) ficou somente as narrativas da sua mãe e da sua avó e dos amigos militantes do pai.

Percebe-se ainda que a tentativa de compreender a personalidade do pai, leva o narrador/autor a tentar situar-se em relação ao Haiti da sua infância e adolescência, aceitando, em grande parte, que esta é uma entidade mítica e fruto do imaginário pessoal. Por isso mesmo, o narrador/autor percebe que este “regresso” não é uma simples viagem de captação da presente vivência dos espaços e lugares onde viveu. A sua dimensão “iniciatória” obriga-o a confrontar essa experiência com a paisagem (e até o clima) do lugar de acolhimento (a Montreal gélida ou, no sentido mais amplo, o Norte), onde no essencial viveu os últimos trinta anos.

Assim, decide deslocar-se, numa espécie de deriva preparatória, para outras regiões do Canadá e dos Estados Unidos, estacionando, em particular, em Brooklyn, onde o pai vivera e acabara por morrer, recolhendo os seus últimos e poucos pertences (o que inclui uma mala depositada em seu nome num banco em Manhattan, que o narrador/autor abandona, pois não a consegue abrir e sente que é um sofrimento inútil descobrir o que lá está…), falando com amigos e familiares e procurando perceber quem era “aquele” pai que morreu rigorosamente só. Ao mesmo tempo que faz esta deambulação de “luto e despedida”, o narrador/autor sonha… pois percebe que a actividade onírica é uma forma “oculta” de visitar esses mesmos espaços e lugares sem ser reconhecido, um pouco como a entrada “clandestina” nos lugares que a sua imaginação “recriou” e que necessita de ter presente e vivo na sua consciência para os confrontar com o país real.

Como bagagem, leva apenas o “Cahier d’un retour au pays natal” de Aimé Césaire, um clássico fundamental da literatura antilhana, que serve como apoio mágico e referência na procura de compreender o seu lugar original.  

Perceber o Haiti. Perceber, na imagem cristalizada do passado, a sua beleza terrífica e sedutora (é muito curioso e interessante que o narrador/autor, entre as diversas qualidades e atributos do pai, destaque a sua capacidade de sedução – atributo necessário para o seu papel de líder), na aridez quase extática dos lugares e na aparente serenidade dos homens, mergulhados na mais negra fome e à espera do crime anónimo que lhes silencie o sofrimento.

Para isso, como referi, o autor vai necessitar de utilizar todos os seus recursos e abordagens. Um deles é, naturalmente, perceber as manifestações culturais do seu povo, em particular, a sua pintura “naïf”, assim como a literatura, uma componente determinante do seu país imaginário.

Esse regresso ao Haiti vai, assim, transformar-se num ritual exorcista próximo da liturgia vudu: saber qual é o lugar dos “mortos” (o pai, um certo país chamado Haiti, repleto de amigos, mas também de castas rácicas, de miseráveis e de assassinos) e, principalmente, se eles continuam ou não a conviver com os vivos.

O resultado dessa “peregrinatio ad loca infecta” é compreender que todos estes “países”, todas estas formas de entender o Haiti, coexistem, tal como coexistem, no mesmo reino, os vivos e os mortos. E que o seu lugar, o seu lugar de autor/narrador é estar em permanente deriva: a nenhum lugar pertence porque a todos pertence.

É também esta certeza que o autor/narrador descobre no olhar silencioso do seu sobrinho que o acompanha no périplo pelo Haiti: a de que ele irá inevitavelmente seguir os passos do seu pai e de ele próprio, e que o sobrinho, ao acompanhá-lo, está também a preparar-se para abandonar o Haiti. Há um destino, uma verdade irredutível, na sua condição de haitianos que os leva a permanecer em trajecto, sempre cá e lá, vivendo presos ao seu lugar de origem, mas em constante fuga para outro lado.

O que fica deste caminho? Um livro, que utiliza todos os registos, do poético à narrativa, do ensaio ao levantamento geográfico e etnográfico, um conjunto de espectros circulando entre o amor e o absoluto silêncio. E a dor, a dor de um destino imparável, entre a fuga e o regresso, entre o exílio e a amarga sobrevivência.
 
Lisboa, 28 de Maio de 2019
 



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