quarta-feira, 4 de abril de 2012

SHUSAKU ENDO 1


UM POVO DE JUDAS



É provável que um dos fascínios imediatos, que o leitor português sentirá desde as primeiras páginas de Silêncio de Shusaku Endo, seja o de ver nelas espelhado um dos papéis mais dignificantes que, em termos históricos, o seu país exerceu: o de “civilizador” e evangelizador, isto é, o de transmissor de princípios humanistas e cristãos a povos longínquos, em condições particularmente inóspitas e que originaram, muitas vezes, o sacrifício da própria vida a quem os propagava. E, mesmo para quem tem tendência a minimizar o sentido e o valor desse papel - realçando os interesses materiais que obviamente estavam por detrás ou reforçando o aspecto deformante e nefasto que, por excesso de eurocentrismo, esses princípios também provocavam -, sente-se sensibilizado por ver que um japonês, pela via literária, reflecte e salienta o significado desse papel. Tudo se passa, no fundo, como se a imagem, que se irradia, assumisse corpo real, palpável, do outro lado do espelho.

Convém, no entanto, salientar o estatuto excepcional de Shusaku Endo na actual literatura japonesa: escritor católico, parcialmente em rotura com os valores tradicionais da cultura japonesa, tornou-se na sua terra (e nos países anglo-saxões) bastante respeitado e prestigiado por uma obra que se centra, em termos temáticos, nas dificuldades de penetração do cristianismo no Japão. Subjacente a esta problemática, está a posição de Shusaku Endo (bem realçada no prefácio de William Johnston que acompanha esta edição de Silêncio) que considera que é muito difícil ao cristianismo expandir-se no “pântano cultural” japonês, se não se libertar de certos valores helenísticos e mesmo genericamente ocidentais. No conjunto da sua obra, foi este romance (com O Samurai, também editado peias Publicações Dom Quixote) que, de forma decisiva, consagrou o autor.

Silêncio, como a generalidade da restante obra de Shusaku Endo, é um romance histórico, situando-se este na primeira metade do séc. XVII, durante a segunda fase de missionarização do Japão. Nesta altura, quando já Portugal, perante a ofensiva holandesa, tinha perdido todas as possibilidades de penetração e comercialização naquele país, os jesuítas portugueses ainda procuravam continuar a acção evangelizadora, enfrentando as proibições e perseguições que, entretanto, o poder feudal nipónico tinha lançado sobre os católicos.

O romance narra a missionarização clandestina do jesuíta Sebastião Rodrigues no interior do Japão e as suas buscas para encontrar o provincial da sua Ordem, Cristóvão Ferreira, homem muito prestigiado pala sua fé, com o fim de compreender porque é que este tinha apostatado. Mas vai ser com a sua própria experiência que Rodrigues irá perceber que, mais do que a tortura e o sacrifício físico daqueles padres, o que lhes faz vacilar na sua fé, é o permanente “silêncio de Deus” perante as barbaridades cometidas sobre os miseráveis camponeses nipónicos - só por reconhecerem o Seu Nome.

Shusaku Endo, utilizando material narrativo ficticiamente documental – com o intuito de acentuar o pendor realista e histórico -, vai construir o percurso do padre Rodrigues em paralelismo com o calvário de Cristo; daí que uma das personagens mais interessantes de Silêncio, pela sua caracterização, seja Kichijiro, o Judas japonês. Este, depois de denunciar o sacerdote português por cobardia, mas também porque a sua formação cristã é um verniz facilmente quebrável, vai arrastar, torturado, a sombra da sua culpa pelos passos mais dramáticos da prisão do jesuíta, suplicando-lhe perdão e, ao mesmo tempo, desde que pressionado pelas autoridades, abjurando repetidamente. E, da mesma forma que a acção de Judas foi essencial para a Revelação de Cristo (não é por acaso que, perante Kichijiro, Rodrigues se recorda de uma das suas primeiras dúvidas teológicas: por que motivo Cristo, como filho de Deus, necessitou do sacrifício e da condenação de Judas para revelar a Sua Verdade?), Kichijiro representa, mais do que os supliciados ou os carrascos que perpassam este romance, o povo japonês no seu todo, porque, tendo estado em contacto com a doutrina de Cristo, a abjurou e denunciou, gerando, deste modo, um crucial “teste” à sua universalidade.

Naturalmente, o cristianismo como doutrina tem que ser aqui uma questão contornável na análise do romance. Mas, de qualquer forma, ele pesa na construção de Silêncio. E o carácter demasiado programático deste livro, onde a ficção se torna elemento ilustrativo de uma problemática e de uma obsessão, “espartilha” a sua acção narrativa e a caracterização das suas personagens, dando-lhe uma respiração difícil, que o torna, por vezes, monótono.

Publicado no Expresso em 1990


Titulo: Silêncio
Autor: Shusaku Endo
Tradução (do inglês): José David Antunes
Edição: 1990
Editora: Publicações Dom Quixote
233 págs., € 12,59




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