sábado, 7 de abril de 2012

SHUSAKU ENDO 2



INTERPRETAÇÃO E VERDADE


O escritor Shusaku Endo, que o leitor português já conhece de alguns romances, tem, no contexto da literatura japonesa contemporânea, um estatuto particular, uma vez que sempre se apresentou como cristão e centrou toda a sua problemática na afirmação do cristianismo no seu país. A sua última obra traduzida, Uma Vida de Jesus, tem, por isso, um imediato - e expresso - objectivo didáctico: divulgar, através da biografia, a Verdade de Jesus aos seus compatriotas.

O autor afirma nas primeiras páginas que irá fundamentar o seu trabalho nos Evangelhos e no resultado das investigações históricas que, a data da produção da obra (1974), tinham sido efectuadas. Ora, a necessidade de comparar os testemunhos dos Evangelhos entre si (aceitando, além disso, que estes são também “interpretações” de factos e que houve “adaptações” e possíveis “introduções” efectuadas pela Igreja cristã primitiva) e, ao mesmo tempo, com o resultado das referidas investigações, com o fim de constituir uma coerência narrativa, coloca inevitavelmente o problema de uma estratégia interpretativa.

Identificar-se como cristão é aceitar, mesmo com uma relativa fluidez e amplitude, os princípios de uma ortodoxia. Por conseguinte, um dos interesses, que Uma Vida de Jesus de imediato suscita, é saber como é que o autor pondera o valor da hermenêutica face a essa ortodoxia.

A estratégia interpretativa de Shusaku Endo perspectiva Jesus condicionado por uma conjuntura histórica difícil, resultante do confronto entre a ocupação romana da Judeia, a sujeição política dos hierarcas da Igreja judaica e o espírito de insubordinação e autonomia das populações que procuravam ansiosamente um Messias. Será a recusa deste confronto que impelirá Jesus à descoberta da Sua Missão; porém, será também esta conjuntura difícil que fará com que nem os Seus discípulos mais directos (exceptuando, talvez, o caso de Judas Iscariotes nos últimos tempos da vida de Jesus) compreendam essa Missão, confundidos com o trágico equívoco de que Jesus teria de ser o líder carismático da sua libertação terrena: é, por fim, esta total incompreensão que obrigará Jesus a doar a Sua Vida como forma de revelar inequivocamente a verdadeira essência de Deus. Há em Jesus, por conseguinte e em resultado das circunstâncias, uma opção suicidária, visto que Ele assume o Seu percurso e sabe que este levará a Crucifixação.

Esta descrição sucinta permite perceber como esta estratégia, oriunda de um ponto de vista ortodoxo, se conclui bem longe dele: de facto, Jesus aparece como um homem que, fruto das circunstâncias, foi tocado pelo dedo da Verdade e se tornou na Palavra de Deus. Esta visão de Jesus tem, no entanto, algumas fragilidades que revelam a incoerência da estratégia narrativa da obra: como compreender a Ressurreição e, em particular, a transformação dos discípulos de figuras limitadas e cobardes em possuidores de uma Revelação que os tornaria capazes de afrontar todos os perigos? Shusaku Endo só tem uma forma de resolver o problema: aceitando a eventualidade de um “mistério” que exigiria a presença da fé.

Esta tentativa de estabelecer uma estratégia interpretativa em Uma Vida de Jesus não quer dizer que dê origem a um resultado coerente: como tem sucedido de forma sistemática, os Evangelhos são encarados entre o simbólico e o literal, conforme a necessidade de sujeitar os “factos” a uma Verdade cristã racionalizada.

Esta incoerência revela os limites de uma obra que se pretende uma biografia credível de Jesus: interpretar uma verdade que se entende como absoluta quer dizer condicioná-la às motivações existenciais do lugar e do olhar que a interpreta. Como qualquer outro discurso mítico, a Verdade de Jesus tem a força débil de se abrir - e de se sujeitar - às interpretações que tem sido necessárias ao longo dos tempos: é essa a história do cristianismo. Ao aceitar a historicidade de Jesus e, paralelamente, ao assumir a atemporalidade da Sua Verdade, “visto que Ele é Deus feito homem”, a instituição religiosa coloca-se num posicionamento que exclui qualquer hermenêutica: esta reflectirá sempre quem interpreta e não O interpretado. Segundo esse posicionamento, a Vida de Jesus nunca poderá ser de facto conhecida e narrada: escrever-se-á sempre “uma” das inúmeras vidas de Jesus – e é este o sentido do cauteloso título da obra de Shusaku Endo.

Saliente-se que nas suas próprias fragilidades se revelam os méritos narrativos de Uma Vida de Jesus. De facto, o próprio desenvolvimento narrativo integra nas dificuldades hermenêuticas do autor: avançando e recuando, conforme sente necessidade de se explicitar e de conduzir o leitor, mesmo repetindo-se não só na caracterização das situações como nas metáforas, fundamentando-se em descrições actuais de paisagens ou questionando, de forma ensaística, os problemas do cristianismo, Uma Vida de Jesus, tratando um tema tão exaustivamente analisado, consegue, mesmo assim, tornar-se, em termos estilísticos, fascinante.


Publicado no Público em 1993.


Título: Uma Vida de Jesus
Autor: Shusaku Endo
Tradução (do inglês): José David Antunes
Editor: Edições Asa
Ano: 1993
234 págs., € 13,09



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