quinta-feira, 21 de junho de 2012

CRISTINA GARCÍA



DESTROÇOS


Deste lado do Atlântico, continua a manter-se, de uma forma muito estranha e tenaz, uma imagem civilizacional dos Estados Unidos de uma “opaca uniformidade”: é a força irradiante daquilo a que os próprios americanos chamam cultura “square”, típica da classe média branca, que tem servido de suporte ideológico ao poder administrativo e político. No entanto, segundo os analistas sociais americanos, esta cultura “square” está em notória desagregação ou a sofrer uma rápida mutação, ao ponto de se tornar irreconhecível e de perder capacidade de intervenção na formação da opinião pública; e, se exceptuarmos as vastas zonas rurais, mas de baixa densidade demográfica, ela já pouca expressão tem ao nível do quotidiano das populações. De facto, a literatura já tinha revelado (mais do que, é certo, qualquer outra manifestação artística), a partir do pós-guerra, que a cultura americana estava enraizada num complexo mosaico social e regional sem uma complementaridade muito legível (a não ser, como é óbvio, ao nível linguístico) e que este facto iria tornar-se inevitavelmente visível a médio prazo. Ora, a partir dos anos oitenta, com a conquista de espaço público por um número ainda mais diversificado de minorias, a literatura americana afirmou-se como a expressão de um vasto “continente”, albergando formações populacionais de culturas muito heteróclitas e, por isso mesmo, com capítulos bem definidos. Repare-se no que sucede hoje: depois da afirmação das literaturas “chicana” e índia (Rudolfo Anaya, Sandra Cisneros, Louise Erdrich e Sherman Alexie, por exemplo), foi a vez das diversas minorias culturais das Caraíbas (Oscar Hijuelos, Jamaica Kincaid e Junot Díaz) e, ainda mais recentemente, da população cubana exilada (Cristina García). E também não se poderá considerar a escritora Katherine Vaz, agora traduzida no nosso país, como a expressão literária da comunidade luso-americana?

Esta constatação vem a propósito da recente edição do último romance de Cristina García, As Irmãs Agüero. Comecemos pelos seus aspectos menos interessantes: o romance procura, em termos estilísticos, efectuar uma espécie de combinatória entre o realismo mágico e o chamado realismo americano (alguém saberá hoje o que isto é?), o que, tendo em conta a origem da autora, poderá ser uma solução literária, talvez culturalmente aceitável, mas que parecerá sempre “fácil e comercial”; além disso, a “ideia base” em que assenta a narrativa é também demasiado óbvia: duas irmãs, que o destino separou, levando uma para os Estados Unidos e deixando outra em Cuba (representando, no fundo, a dupla realidade da população cubana), mas que possuem em comum a obsessão pelo que intrigantemente sucedeu “de facto” no percurso dos seus antepassados. Entrecruzando passagens de um diário paterno - descoberto por uma das filhas, muitos anos depois, na quinta de um familiar a quem o pai o entregara, antes de se suicidar - com a narração das situações vividas pelas duas irmãs (e pelos seus filhos) na busca de “resolverem” um passado traumatizante, As Irmãs Agüero pretende estabelecer um amplo fresco sobre o percurso atribulado da nação cubana durante este século.

De certo modo, pode dizer-se que As Irmãs Agüero é uma saga familiar. Mas uma saga com características particulares, visto que a imagem da família, que é transmitida através das suas personagens, parece a de uma fotografia rasgada, como se, em Cuba, apenas pudessem existir “destroços” de famílias. De facto, nas famílias que se sucedem neste romance há sempre uma entidade perecível ou volátil (habitualmente a masculina) e a formação das personagens aparece realizada na carência de um dos pólos. Se exceptuarmos o filho homossexual de uma das irmãs, Constância, todas as personagens determinantes desta narrativa são mulheres com questões essenciais - para o seu equilíbrio emocional e afectivo - a esclarecer sobre a identidade do pai. O pai - mesmo aquele que deixa o diário - é sempre uma entidade sombria, ou incógnita, ou que alguém decide que não “deve” ser conhecida, ou ainda demasiado exposta como “herói” e, por conseguinte, ocultando a sua real face humana. Seja como for, o modo como essa ausência se constitui parece condicionar o olhar que as personagens têm do seu corpo e “orientar” o seu desejo sexual. Quer isto dizer que Cristina García procura correlacionar a estratégia que o desejo sexual assume nas personagens - e é sabido como ela é determinante para a definição da própria identidade - com a forma como se concretizou a ausência do pai.

É evidente que se torna fácil associar o passado (com o seu cortejo de destroços familiares, de pais ausentes) destas personagens femininas - que, de certo modo, tipificam as mulheres cubanas nos dias de hoje - a uma certa imagem da “pátria cubana”. De facto, parece que Cristina García, subliminarmente, tem tendência para fazer esta associação: Fidel Castro apareceria assim como aquele que, pela sua simples presença, transformaria Cuba numa realidade ausente, num buraco negro que “destroçaria” os seus filhos, desequilibrando-os em termos emocionais e tornando-os incapazes de se constituírem em família. Não é por acaso que Reina, a irmã que fica em Cuba e que é a única personagem que acredita de início na Revolução, resolve libertar-se da imagem do “pai legal”, lançando ao mar a espingarda com que ele matara (por acidente?) a sua mãe e abandonando Cuba, para se juntar aos exilados em Miami.

Sem se estar em presença de um romance de grande criatividade, pode, contudo, afirmar-se que esta obra de Cristina Garcia revela qualidade literária, em particular pela segurança estilística, pelo profissionalismo revelado na construção de um ritmo narrativo estimulante e, ao mesmo tempo, pela sinuosidade elaborada com que vai erguendo as diversas personagens.

Publicado no Público em 1998.


Título: As Irmãs Agüero
Autor: Cristina García
Tradutor: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editor: Difel
Ano: 1998
279 págs., € 11,75





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