sábado, 2 de junho de 2012

WILLIAM GADDIS




O REGISTO FINAL



Quando William Gaddis publicou, em 1955, o seu primeiro romance, The Recognitions, a crítica americana não lhe foi muito favorável e o acolhimento público foi quase nulo. Este obscuro colaborador do “The New Yorker”, que tinha vivido na orbita boémia dos escritores da geração “beat”, desconcertara tudo e todos com esta gigantesca obra, profusamente erudita, repleta de referências literárias e jogos linguísticos, e cujas interrogações estéticas e temáticas - sobre as relações entre verdade e real, original e falsificação, duplo e Mesmo, redenção e arte, dinheiro e signo - estavam bem longe daquilo que, naquela altura, o meio literário entendia como de urgente formulação.

Passados cerca de vinte anos, porém, este romance ganhou uma corte de fervorosos e iniciados leitores, e algumas figuras cimeiras da crítica dos Estados Unidos encaram The Recognitions como um dos mais importantes romances americanos do pós-guerra e precursor da produção de autores como Barth, Barthelme, Brautigan, Coover e Pynchon. Por isso, quando, em 1975, William Gaddis publicou o seu segundo romance, JR, já ninguém se admirou, nos meios literários, com a sua consagração, ao ganhar o National Book Award. Contudo, o reconhecimento da crítica do papel de charneira da ficção de William Gaddis na literatura americana contemporânea nunca estimulou o grande público a aproximar-se da sua obra, provavelmente porque esta assume a forma de labirínticos “mega-romances”.

Em 1985, William Gaddis publicou Gótico Americano, o romance agora traduzido. Esta obra, de dimensões mais comuns, tem sido, por isso, uma fácil iniciação a sua produção literária. Pode caracterizar-se, utilizando uma citação do próprio Gótico Americano, como “uma nota de pé de página, um post-scriptum” das anteriores obras, onde o autor procura, desesperada e goradamente, os “finais felizes” que dêem uma tonalidade mais optimista a toda a sua actividade literária.

Estas características de Gótico Americano têm a ver não só com as dimensões deste romance em relação aos anteriores, mas em particular porque são aplicadas as mesmas técnicas narrativas de JR. De facto, toda a acção dramática se centra quase em exclusivo nos diálogos - são estes que transmitem as poucas referências cénicas expressas - e, de tão escassamente descritas, as personagens parecem ser meros “suportes” de falas.

Nada sucede em Gótico Americano. E, contudo, como se diria para os romances de sucesso, há sexo, violência e morte. Tudo numa subalugada casa “gótica americana”, repleta de móveis heteróclitos, onde vive uma herdeira milionária e muito frustrada, o seu marido, um veterano da guerra do Vietname, associado a tramoias obscuras de um político religiosamente fanático e de extrema-direita, e por onde passam, não se sabe bem por que motivo, o irmão da herdeira, marginal e superficialmente converso ao budismo, e o senhorio, um geólogo com pretensões de escritor, desencantado com as suas actividades efectuadas em África ao serviço da CIA (?).

Mas tanto podiam ser estas personagens como quaisquer outras. Os diálogos revelam um discurso incoerente, cheio de interrupções, como se já não houvesse nenhum tipo de convicção, nada para afirmar. Um telefone interrompe constantemente as falas, intromete-se no raciocínio, obriga-o a uma constante deriva.

Pressente-se que todo o suporte romanesco de Gótico Americano pode ser alterável. O essencial encontra-se na frenética, dir-se-ia mesmo histérica, tentativa de fazer um ponto da situação da civilização ocidental (haverá outra?). E o resultado é o mais pessimista possível: nesta civilização do sinal, onde nada existe exterior aos códigos, que, aparentemente, é a oitava maravilha que a evolução histórica produziu, o aviltamento ético é permanente, empobrecendo a semântica, degenerando a sintaxe.

Por isso, este romance é de urna amargura quase insustentável. Nenhuma redenção é previsível: a religião é um outro modo do comércio e da luta pelo poder, a arte uma forma de “evasão” impotente, “uma colcha de retalhos de conceitos, empréstimos, decepções”. É certo que esta dá, algumas vezes, a “esperança de uma ordem restabelecida”, de ser possível a reconstrução de um “passado improvável”. Mas o que verdadeiramente existe, por todo o lado, é desperdício, incoerência, lixo. A vida é “um continente escuro”, “uma questão de medo”, “uma ficção qualquer para passar a noite”.

Neste cenário, qual a ficção possível? Nenhuma. Escrever é só urna forma de constatar sem complacência nem esperança: o registo final. Por isso, os romances repetem-se, procurando só alargar a visão do apocalíptico desastre: um grito contínuo e em permanente crescendo.


Publicado no Público em 1991.

(Foto do Autor de Marion Ettlinger)


Título: Gótico Americano
Autor: William Gaddis
Tradutor: Muriel Alves Brazil
Editor: Difusão Cultural
Ano: 1991
270 págs., (esgotado)



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