quarta-feira, 7 de novembro de 2012

PAUL BAILEY



A SOMBRA DO PAI



Uma das características das literaturas deste século da Europa Central e do Leste é o papel negativo que constantemente nelas assume a figura do pai. Alguma interpretação psicanalisante dirá que esse papel negativo é compreensível, uma vez que considera que a “deglutição” do pai está na génese da ficção, no sentido em que esta é a arte da “ocultação” das origens. Porém, no caso das literaturas referidas, creio que a questão é mais simples e objectiva: as sociedades que lhe deram origem têm uma má relação com a História imediata e a corporização dessa época ergue-se, como é natural, na figura do pai. Foi o pai que a construiu, que a constituiu. Basta recordarmos a dimensão sociológica dos factos sinistros que envolvem a II Guerra Mundial, as ditaduras estalinianas e a Guerra Fria para compreendermos que a radicalidade destas situações seria insustentável sem um “julgamento” das gerações posteriores e que tem sido esse, entre outras artes exorcistas, um dos papéis decisivos da narrativa deste século.

Não é tão comum, no entanto, que semelhante temática apareça na literatura inglesa, como sucede com este romance de Paul Bailey, intitulado Os Pecados dos Nossos Pais (versão infeliz - porque abusivamente explícita - de uma obra que se chama, na edição original, Kitty & Virgil; deve reconhecer-se, contudo, que este título tem pouco valor comercial e que, além disso, a intenção do autor - apresentar duas personagens que, na aparência, são comuns a muitas outras - se perde no nosso país; de qualquer forma, haveria decerto outras hipóteses mais em sintonia com o trabalho de tradução que é, em todas as restantes perspectivas, excelente). Paul Bailey, com uma obra iniciada na década de setenta e constituída, entre outros trabalhos, por meia dúzia de títulos de ficção, é um autor com um reconhecimento um pouco “secreto” em Inglaterra, tendo, porém, entre alguns prémios, já conseguido ser, por duas vezes (com os romances Peter Smart’s Confessions e Gabriel’s Lament), finalista do Booker Prize. Saliente-se que este último romance, agora publicado no nosso país, é, por unanimidade, considerado pela crítica inglesa como a obra mais interessante que o autor até hoje publicou.

Segundo declarações do próprio autor, Os Pecados dos Nossos Pais pretende ser uma homenagem ao povo romeno. Com esse intuito, Paul Bailey viajou demoradamente pela Roménia e pelo Leste europeu, levando cerca de quatro anos a redigir este romance. Nesta perspectiva, a obra concluída é, de certo modo, imprevisível e original. Porque esta “homenagem” deu origem a uma história de amor, elaborada num estilo e com uma estrutura quase clássicos, entre uma inglesa de meia-idade, vivendo do trabalho de preparação “editorial” de biografias, e um romeno, poeta e vagabundo, a viver em Inglaterra e fugido do regime de Ceausescu.

Porém, o que, de imediato, fascina neste romance de Paul Bailey é a forma como concilia e mescla tragédia e ironia, transformando-a numa obra de uma saborosa “ligeireza” que pondera e descreve situações graves e muito dolorosas. Neste sentido, parece que sobre Os Pecados dos Nossos Pais paira, à distância, as sombras tutelares de Milan Kundera e Bohumil Hrabal. Contribui, sem sombra de dúvida, para esta visão global da obra, um estilo que controla, pela farsa, o excesso de dramaticidade de certos momentos, mas, em particular, a criação de um conjunto de personagens secundárias que tingem de uma sábio cepticismo irónico a sinuosidade das suas existências: é o caso das deliciosas criações literárias que são as figuras do mordomo-amigo do pai de Kitty ou da dona da pensão, ex-cantora de ópera, em que Virgil mora.

De forma paradoxal, este romance, que se conclui com um suicídio e uma história amorosa abortada, é um “livro feliz”, já que as suas personagens transmitem, mesmo dilaceradas por sinistros fantasmas vindos do passado, o sentimento de uma intensa euforia pela vida. O amor, tal como nos é apresentado em Os Pecados dos Nossos Pais, seguramente que é incapaz de redimir ou de “salvar”, mas tem a capacidade, não despiciente, de dar um toque de jovialidade em destinos que já estão determinados antes de ele brotar. A própria situação, em que as personagens principais se “descobrem” uma a outra, parece ter os “sintomas” do percurso da sua história amorosa: Kitty está a acordar da anestesia, após ter sofrido uma histerectomia, quando dá de caras com o sorriso de um servente hospitalar, Virgil, que, junto à sua cama, lhe diz, com um sotaque estranho, que nunca tinha visto nenhuma mulher a dormir tão bela.

Todo o romance se estrutura no contraste de duas civilizações e dos comportamentos emocionais que, de um modo complexo, delas emana: por um lado, o modo de sentir britânico, com o seu gosto pelo cosmopolitismo, a sua visão “imperial” das outras civilizações, um quotidiano marcado pela urbanidade das existências; por outro, a Roménia, com o seu nacionalismo “jovem”, onde se faz sentir o peso da ruralidade e das tradições orais milenares, com um quotidiano marcado pelo medo e pela repressão. Ou, por outras palavras, Kitty e a contenção, como forma de se esforçar por depositar o “pé” das emoções e assim alcançar uma imagem de definitiva dignidade no seio da catástrofe; ou Virgil e o abandono à emoção, como forma de vivificar a intensidade poética do momento, fazendo dessa exploração uma forma de vida (por exemplo, são interessantes, até numa perspectiva ideológica, as considerações de Virgil sobre a repugnância que lhe provoca o “ser vigilante”).

É dentro deste contraponto civilizacional que deve ser entendido o estigma que, para as duas personagens principais, constitui o percurso dos seus pais. Tanto o pai de Kitty como o pai de Virgil deixaram atrás de si um rasto de destruição, como resultado da forma como a História, com os valores e princípios que segregou em cada contexto civilizacional, “trabalhou” as suas almas, transformando-os em monstros de frivolidade. A leviandade amorosa do pai de Kitty ou o aberrante comportamento “camaleónico” do pai de Virgil parecem, ao nosso juízo distante de leitores, como “crimes” abissalmente (e talvez objectivamente) distintos. Mas, no contexto da “história privada” de cada uma destas personagens, tiveram os mesmos efeitos devastadores, já que atingiram um poder similar de amputação sobre a sua capacidade de, em plenitude, conseguirem sentir e sobreviver.

No fundo, talvez Os Pecados de Nossos Pais venha reproduzir aquilo que a literatura deste século tem repetido de um modo incessante: que todos nós, quer queiramos ou não, nada mais fazemos, ao longo da vida, do que tentar fugir debaixo da sombra tutelar do pai, como forma de conseguir libertar-se da sua tenaz sufocante e plenamente respirar.

Publicado no Público em 2000.



Título: Os Pecados dos Nossos Pais
Autor: Paul Bailey
Tradução: José Vieira de Lima
Editor: Asa
Ano: 2000
286 págs., € 3,50