terça-feira, 30 de outubro de 2012

CARMELO SAMONÀ




A (A)NORMAL IRMANDADE



Há livros que são verdadeiras preciosidades. Como é evidente, pelo cuidado posto na edição. Mas, antes do mais, porque aparecem, de modo intrigante, à revelia das tendências dominantes do mercado editorial e nos revelam textos saborosamente imprevisíveis: é o caso deste Irmãos de Carmelo Samonà, um livro de uma rara e estranha beleza.

O autor, piemontês, especialista em literatura espanhola na Universidade de Roma, afirmou-se, de modo tardio, como ficcionista com este mesmo texto.

O enredo de Irmãos descreve-se de forma sucinta: trata-se de um relatório (?) de uma longa relação entre dois irmãos, vivendo sozinhos numa ampla casa, e em que o mais novo sofre de uma prolongada doença psíquica. Com um labor minucioso e atento, o irmão mais velho, como narrador, anota dados e informações sobre essa relação e em particular sobre o comportamento do doente, juntando interpretações e análises esparsas, descrevendo difusamente situações.

Emana, no entanto, deste texto uma perplexante ambiguidade que leva o leitor a pressentir, motivado até pela sua qualidade estilística, ramificações e sentidos ocultos. Ao ponto de alguns críticos terem interpretado Irmãos como uma espécie de fábula esotérica sobre as relações políticas e sociais da Sicília com a Península Itálica...

Mas, com rigor, pode afirmar-se que, tendo por base uma intensa relação afectiva, Irmãos analisa as relações discursivas e comportamentais entre “normalidade” e “anormalidade”, trazendo aliciantes pistas sobre os limites e as interpenetrações destes comportamentos.

No discurso da normalidade, enunciado aqui pelo narrador, há sempre uma tendência para este se assumir, perante a anormalidade, como uma consciência “paternal”, resultante da sua capacidade de autoanálise e da convicção que esta não existe no discurso que se lhe opõe. Mas nessa mesma assumpção transparece também a principal orientação daquele discurso perante o “anormal”: descobrir-lhe sentidos, torná-lo legível, em resumo, eliminar as diferenças que instituem a anormalidade e tentar reduzi-la a um típico subgénero da norma. Irmãos é, de certo modo, a cartografia dessa tentativa, obrigatoriamente fiascada, mas, por razões afectivas, necessária e continuada de forma perseverante.

Mas esta simples constatação ilude a riqueza de um texto que, mediando sempre entre a reflexão teórica e poética, consegue iluminar de um lirismo muito particular todo um conjunto diversificado de observações. As relações da doença com o espaço (o modo como, a níveis diversos, esta se espalha pelos interstícios familiares da casa ou ainda como se manifesta na rua num delírio exploratório), a importância da invenção narrativa como “canalizador” da alucinação, o mimetismo da normalidade como sintoma do agravamento conjuntural da doença, mas, em particular, o esforço de desdobramento do narrador para, de um modo solidário, acompanhar ou perseguir as permanentes “viagens” do seu irmão, são descritas com tanto rigor e sensibilidade que transformam Irmãos numa das mais belas e comoventes obras de ficção traduzida que a nossa edição nos revelou no ano transato.


(Publicado no Expresso em 1988).



Título: Irmãos
Autor: Carmelo Samonà
Tradução: Isabel Martins Tomé
Editor: Bertrand
Ano: 1987
129 págs., esg.






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