quarta-feira, 10 de abril de 2013

MICHEL DEL CASTILLO




O TRAUMA DA ORFANDADE


Os já numerosos títulos da obra de Michel del Castillo deram-lhe um estatuto bem comum a muitos outros autores franceses: com uma certa complacência da crítica e uma relativa aceitação do público, vai editando-se, paulatinamente, a sua produção narrativa, sem que seja previsível que algum dia apareça algum título marcante. Contudo, a obra deste autor de origem catalã, iniciada nos anos cinquenta com o romance Tanguy (já traduzido) e com a “patronage” de Francois Mauriac, não é de modo algum desinteressante.

Um dos aspectos mais curiosos da maioria dos seus romances, e também presente no recente Uma Mulher Em Si (um título de franco mau gosto) agora traduzido, é o modo como Michel del Castillo encadeia a história pessoal com a ficção. Muito marcado pela sua história familiar, a Guerra Civil e um certo “substrato” cultural bem espanhol, o autor procura transfigurar de forma narrativa essa “memória”, esgarçando-a e reconstruindo-a em diversas situações e personagens. Há, por conseguinte, uma constante recorrência da ficção para a autobiografia, um permanente “disformar” de personagens reais que apela à curiosidade do leitor.

Esta constante é bem evidente em Uma Mulher Em Si, uma vez que se centra na narração das sessões de trabalho de um realizador e do seu assistente para a elaboração do guião de um filme que pretende ser uma recriação das relações difíceis que, na infância, o realizador teve com a sua mãe. De imediato, se torna evidente que este realizador, Jean-Pierre Barjac, é uma espécie de “reconversão” romanesca do próprio Michel del Castillo, um “duplo” para onde o autor transfere a sua própria experiência pessoal.

Porém, ao colocar como narrador o assistente de realização, Michel del Castillo procura definir um “olhar exterior”, ainda que cúmplice e compreensivo, sobre essa experiência, para que a “filtre” e evidencie os seus efeitos dramáticos e poéticos. Por outro lado, a própria situação de elaboração de um argumento por dois indivíduos, com base na experiência pessoal de um deles, e da selecção de componentes para a construção de uma personagem do filme que funciona, por sua vez, como “duplo” do realizador, permite ao autor que envolva numa análise e num juízo constantes essa mesma experiência, de molde a condicionar a sua dimensão traumática. De certo modo, pode dizer-se que Uma Mulher Em Si pretende ser - abstraindo-se o autor das acentuadas diferenças que existem entre escrever um guião de um filme e um romance - uma dramatização da sua própria elaboração: é essa a principal razão porque o título do filme é o mesmo do romance.

Paralelamente, outro dos princípios que subjaz a este livro - e a que o título pretende também aludir - é o de que em qualquer romance masculino (no sentido da perspectiva masculina que lhe está subentendida) existe a compulsão de resolver um conflito com uma imagem de mulher. Neste caso concreto, a imagem da mãe do realizador (mas não só: todas as figuras femininas que aparecem neste romance são, de modo diverso, problemáticas), Serafina Perduch, uma mulher que é retratada como tendo uma avidez obsessiva de viver no esplendor da liberdade, necessitando de delinear a cheio a silhueta da sua existência com o reflexo do seu poder de sedução, mas que as incontroláveis e difíceis circunstâncias históricas tornaram num ser acossado, frágil, sempre em fuga diante da realidade e capaz das mais ousadas “artes” do corpo e da sensibilidade para sobreviver. Uma mulher que sabe que só terá um filho enquanto este se mantiver “cativo” de uma imagem mítica dela, e que, por isso, quando é confrontada com a opção entre a destruição desta imagem e o sacrifício do próprio filho, decide pela mais radical, abandonando o filho e procurando, desesperadamente, acentuar por um desaparecimento misterioso a magia da sua imagem.

Não há dúvida que Uma Mulher Em Si tem certas ideias-base estimulantes e que algumas das suas personagens são bem concebidas e contextualizadas. No entanto, em termos globais, a sua finalização está bem longe de atingir e satisfazer estes princípios: a estrutura romanesca revela-se pouco dominada, com inúmeras divagações desnecessárias ou repetitivas, uma reflexão que muitas vezes se confina à vulgaridade e um estilo que, em não poucas páginas, é de uma enervante platitude.


Publicado no Público em 1992.


Título: Uma Mulher Em Si
Autor: Michel del Castillo
Tradução: Antonio Moreira
Editor: Editorial Noticias
Ano: 1992
304 págs., € 13,85




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