terça-feira, 9 de abril de 2013

PHILIPPE LABRO





O REGRESSO DA “TERRA DOS MORTOS”



Mesmo que, em termos literários, se possa encarar como um aspecto menor, não há dúvida que as inovações científicas e técnicas no campo da medicina, que permitiram processos de sobrevivência em situações limite da vida humana, provocaram o aparecimento de uma nova temática: de facto, já não são poucas as obras que, um pouco por toda a parte, apareceram a narrar experiências de escritores que tocaram a pele da morte, seja ela de que tipo for. Dado o seu sucesso editorial e as repercussões que obtiveram nos meios de comunicação social, bem se pode dizer que estas obras correspondem a uma qualquer “necessidade” do público e que, por isso mesmo, a sua motivação ultrapassa o universo do estritamente literário para mergulhar no presente magma das obsessões civilizacionais.

Esta constatação deriva, na circunstância (mas poderia ser também, e só para referir um caso recente da nossa literatura, a propósito de De Profundis - Uma Valsa Lenta, o recente livro de José Cardoso Pires), da edição no nosso país de A Travessia, a última obra de Philippe Labro, uma personalidade bem conhecida em França, já que tem intervindo, como realizador, jornalista e escritor, em todas as indústrias da comunicação (televisão, cinema, rádio, imprensa escrita e edição), adquirindo, com esta sua actividade diversificada, uma imagem de homem culto, sensível e aberto às questões cruciais do nosso tempo.

Philippe Labro, aos sessenta anos, deu entrada num hospital de Paris com uma doença pulmonar resultante de uma bactéria rara que o deixou durante algumas semanas à beira da morte e da qual foi curado de uma forma quase milagrosa. Foi esta experiência que o autor resolveu contar de um modo diferente das suas obras anteriores: “o romancista que me esforcei por ser nos meus livros anteriores deve desaparecer desta vez para sempre”.

De uma forma curiosa, é esta intenção do autor em “testemunhar” de uma forma despojada do romanesco que mais intriga na leitura de A Travessia. Porque, sem haver razão alguma para duvidar da sinceridade do autor, o que esta obra evidencia é um amplo aparato de técnicas romanescas, onde nada falta, incluindo situações que raiam a pura alucinação, figuras alegóricas, “vozes” interiores que dialogam e procuram “puxar” o paciente para a morte ou para a vida, rememorações pessoais narradas com minúcia, descrições de reportagens, etc. No essencial, mesmo aceitando que esta não era a intenção primordial de Philippe Labro, o que esta sua obra provoca é o questionamento da fissura testemunho/ficção com que, falaciosamente, se pretende caracterizar a origem do romanesco, esquecendo que a memória só subsiste na expressão verbal e que esta, por sua vez, a sujeita a uma constante transformação semântica. O que a mais recente literatura norte-americana tem provado até à exaustão (veja-se o caso exemplar, e já traduzido, de Tobias Wolff) é que o conflito surdo entre memória e ficção atravessa qualquer discurso narrativo e que, por isso mesmo, a mais justa forma de “testemunhar” é assumindo a própria estrutura romanesca. A Travessia, mesmo com os enunciados cautelares do autor, vem corroborar esta asserção.

Uma das perguntas, que o leitor, de imediato, faz perante este livro, tem a ver com o próprio título. Que travessia é esta de que o autor fala? Pensar-se-á que tem a ver com a passagem da vida para a morte. No entanto, o próprio autor nunca especula sobre a hipótese de ter passado “para o outro lado”; reconhece que chegou ao “cabo Horn” e lhe sentiu a tempestade, mas não o passou, ou, para utilizar uma imagem já referida, que tocou a pele da Morte, mas não a abraçou. Sendo assim, não houve, literalmente, “travessia” nenhuma, mas uma estadia prolongada na antecâmara da Morte (e que o autor considera como sendo já “terra dos mortos”) e o retorno desde a Fronteira donde, depois de passada, não se regressa.

É sabido que o medo da morte é datável em termos históricos. E que talvez nunca tenha sido tão intenso como nos dias de hoje. Para isso, decerto que contribuiu a falência dos seus modelos interpretativos e integrantes (em particular, o religioso). Neste contexto, compreende-se uma das causas do fascínio (e do sucesso) de obras como A Travessia: a convicção do leitor comum de que estas obras, pela proximidade com que o seu Autor se abeirou do precipício da Morte, serão capazes de levantar um pouco o véu que encobre e origina o seu mistério.

Por outro lado, o leitor busca nos autores destas obras a “autoridade” resultante de terem vivido uma experiência-limite que, por si só, parece permitir(?) “clarificar” aquilo que é determinante no caos existencial, e que, por isso mesmo, o “ajudará” a descobrir o “ponto de equilíbrio” que o leve a encarar serenamente a vida e a esperar de uma forma apaziguada a própria morte. Bem sintomática de tudo isto é a atitude de Phillipe Labro, testemunhada em A Travessia, que descobre, com o seu retorno, a urgência de uma serenidade mais constante e se sente impelido a efectuar uma revalorização integral da sua visão e da sua acção no quotidiano, voltando a definir o que é essencial e o que é acessório, em suma, a “renascer”, como se as brumas da morte o tivessem purificado da conspurcação que os longos anos da existência lhe foram deixando.

No essencial, A Travessia não está muito longe da “literatura” de origem norte-americana da religiosidade “new age” e é curioso ver um intelectual, como Philippe Labro, que tanto tem feito para introduzir certos valores e modelos da cultura dos Estados Unidos na sociedade francesa, vir também contribuir, de uma forma tão “dolorosa” e decerto nada intencional, para a introdução deste tipo de literatura religiosa na cultura francesa.

Mas, em todos estes aspectos, se estão a referir matérias e questões que, a seu modo, são periféricas ao universo literário, já que não é a literatura, tal como é concebida em termos clássicos, o que o leitor aqui visa como referência maior. Mesmo que Philippe Labro a reclame - e não há dúvida que a literatura, e em particular a poesia, parece ser uma das coisas que “se salva” no seu “renascimento”... Por isso, referir o classicismo de um estilo, a sua contida expressão lírica ou a inteligência com que o autor contorna situações mais patéticas e mais dificilmente “legíveis” parecerão a esse leitor como pormenores acessórios. Mas não o são. E o leitor, para lá de todas as inquietações que procura resolver em A Travessia, deveria esforçar-se por estar atento à musicalidade do estilo de Philippe Labro e à sua aparente simplicidade que são resultantes de um enorme trabalho e de um prazer quase sensual com a palavra.


Publicado no Público em 1997.



Título: A Travessia
Autor: Philippe Labro
Tradução: Maria Emília Ferros Moura
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1997
228 págs., € 12,16


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