quinta-feira, 27 de agosto de 2015

DIDIER VAN CAUWELAERT


 
 
 
 
AMARGO E LEVE
 
No ano literário francês, um período bem peculiar e decisivo – uma vez que é determinante para avaliar a “colheita” desse ano – é o que se denomina por “rentrée”. Todos os anos são publicados, nesta altura, mais de cem títulos de narrativa e uma boa parte deles – muitas vezes mais de metade – pertencem a autores de primeiras obras. É sabido que muitos vão ficar por aqui; mas também é sabido que outros, com uma regularidade britânica, fazem aparecer as suas obras neste período, procurando, assim, captar as atenções dos júris dos prémios literários, de modo a que, com esse galardão, consigam atingir vendas e tiragens expressivas, assegurando o interesse das editoras pela publicação, sem percalços, das suas obras futuras. É desta forma que a “instituição literária” francesa se alimenta de uma produção regular, em que a maioria das obras, depois dos holofotes mediáticos, é esquecida, mas que, em paralelo, permite o aparecimento de um conjunto de obras decisivas para a história literária francesa.
 
Um dos autores habituais da “rentrée” literária francesa é Didier van Cauwelaert, de quem foi agora publicado no nosso país o romance intitulado A Educação de Uma Fada. Este autor, nascido em 1960, começou, ainda muito novo, no início da década de oitenta, a publicar a sua obra, exclusivamente narrativa e dramatúrgica, obtendo diversos prémios (em 1994, com o seu romance, Un aller simples, ganhou o Prémio Goncourt) e conseguindo sempre alcançar um significativo sucesso comercial e crítico. Com mais de uma dúzia de títulos publicados, na sua obra destacam-se, para além do que foi galardoado com o Goncourt, os romances Cheyenne e La Vie interdite.   
 
A Educação de Uma Fada parece construir-se como uma história de fadas para adultos. Ou, por outras palavras, assume a estratégia oposta à da literatura para a infância e juventude, procurando integrar o máximo possível de irrealidade num contexto real. E não se julgue que o autor opta por “aligeirar” esse contexto real; pelo contrário, são diversas as situações que aqui aparecem carregadas de sofrimento: a uma personagem é diagnosticado um cancro de mama, outra é uma refugiada iraquiana clandestina em França, a personagem principal, num quadro de decadência profissional, desagrega-se na abrupta ruptura da sua relação amorosa, uma criança vive com o estigma doloroso do desaparecimento brutal da sua figura paterna, etc..
 
É evidente que tal estratégia narrativa só pode ser bem sucedida se conseguir manter e transmitir um elevado grau encantatório. Quer isto dizer, que não basta ter uma visão muito peculiar sobre a eventualidade de existirem fadas num contexto real, mas que as personagens que aparecem com semelhante atributo mágico têm que ser assumidas pelo leitor como – pelo menos – beneficamente aceitáveis neste “exercício” da ficção e que, se deixar florescer na sua cabeça esta plausibilidade, tal opção só enriquece o seu olhar sobre a realidade. De outro modo, o exercício no fio da navalha com que se pretende “convencer” o leitor, ao mais pequeno desequilíbrio, poderá fazer com que este lance o romance para o lado, descrendo dele.
 
Ora, não há dúvida que Didier van Cauwelaert, em A Educação de Uma Fada, consegue, sem esgarçar, essa envolvência encantatória, ao ponto de “quase” nos fazer crer que certas personagens – como é o caso desta iraquiana, caixa de supermercado, que, originária e subsistindo num verdadeiro inferno vivencial, nunca abdicou do seu sonho de ingressar na Faculdade e de estudar André Gide – apenas aparecem na vida das pessoas com “o condão” de revelar o ponto momentâneo de “harmonização” da existência. E, por isso mesmo, este romance, através de uma estrutura narrativa (e de um estilo) que parece desenvolver a trama numa espécie de “voo de pássaro” – e que o autor já nos acostumou em anteriores romances -, revela, numa leitura fluída, uma visão aliciante, entre o terno e o amargo, sobre as formas como, nos dias de hoje, a vida desliza pela corrente dos pequenos júbilos e das grandes mágoas.
 
Por fim, gostaria de saudar o aparecimento, numa editora tradicional do sector escolar, de uma nova colecção, “Cântico Final”, dedicada à tradução de obras de ficção estrangeira. Principalmente, quando essa nova linha editorial nos aparece com características exemplares de edição – tanto ao nível de composição e do papel como do arranjo gráfico das capas e, o que é fundamental, da qualidade das traduções.
 
Publicado no Público em 2001.                                                                              
 
 
Título: A Educação de Uma Fada
Autor: Didier van Cauwelaert
Tradutor: Ana Paixão
Editor: Âmbar
Ano: 2001
196 págs., esg.
 
 
 



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