segunda-feira, 31 de agosto de 2015

J. M. COETZEE 2


 
 
 

 
 
O SILÊNCIO DA VIDA
 
Em 1997 e 1998, J. M. Coetzee foi convidado pela Universidade de Princeton, para, no quadro das Conferências Tanner, proferir duas conferências sobre um problema ético que considerasse bem candente. Dessa participação, resultaram dois textos (“Os Filósofos e os Animais” e “Os Poetas e os Animais”) que compõem este volume intitulado As Vidas dos Animais (completado por reflexões muito interessantes de uma teórica da literatura, de um filósofo, de uma professora de estudos religiosos e de uma primatóloga). Mas - e aqui se manifesta as peculiaridades da personalidade literária de J. M. Coetzee - em vez de optar pela forma de ensaio filosófico (forma habitual de participar nas referidas Conferências), resolveu elaborar dois textos de metaficção, em que uma velha escritora australiana, Elizabeth Costello, vai apresentar duas comunicações num colégio americano, onde o filho é professor auxiliar. Essas comunicações são sobre um tema que cada vez mais obceca esta escritora ao ponto de provocar, em seu redor, um clima de fortíssima hostilidade: os crimes perpetrados por sistema pelos homens sobre os animais.
 
A opção de J. M. Coetzee, em apresentar duas ficções - que constituem uma pequena novela - em vez de textos ensaísticos, não é gratuita: é que o autor está absolutamente convicto de que a narrativa é uma forma literária mais perfeita do que a do ensaio filosófico para ajudar a compreender uma determinada problemática. E isto porque a ficção, sendo o instrumento ideal para tentar compreender o Outro, tem, numa reflexão sobre essa alteridade quase absoluta que é o animal (pelo menos, porque assim tem sido assumido pela história das ideias e das religiões), uma capacidade de problematizar que parece impossível à filosofia. Por isso, como refere, de modo brilhante, Marjorie Garber no seu comentário, estas conferências de J. M. Coetzee são uma brilhante reflexão sobre os limites da inteligibilidade do romance e sobre a sua eficácia em transformar mentalidades. Saliente-se que, além disso, no caso do tema particularmente polémico destas conferências, a ficção, ao permitir encenar não só os argumentos, mas também as reacções, favoráveis e hostis, dos ouvintes e dos familiares de Elizabeth Costello, expõe, como se fosse uma construção pluridimensional, a problemática que está na sua raíz.
 
Antes de avançar para o tema concreto destas conferências, ou melhor, das comunicações de Elizabeth Costello (os direitos dos animais), gostaria de chamar a atenção do leitor para o facto de esta obra, na sua brevidade, ser uma das mais complexas, arrojadas e aliciantes reflexões que se pode ler sobre este tema e que está, com a maior das sinceridades, a anos-luz dos recentes debates caseiros sobre as violências cometidas sobre animais.
 
A argumentação de Elizabeth Costello parte do pressuposto de que toda a história da filosofia (de Aristóteles a Descartes e Kant), ao reflectir sobre o animal, sofre de “homocentrismo”; isto é, avalia o animal de acordo com valores fundamentais para o homem (a consciência, a razão ou a posse de linguagem articulada), definindo assim uma hierarquia equívoca e descurando aquilo que é o elo comum entre os homens e os animais: a existência de uma “alma corporizada”, com a mesma capacidade de fruir a vida e de pertencer à harmonia musical da Natureza, e, por consequência, com idêntico pânico pela morte (mesmo que a morte possa não ser, para os animais e para os homens, “a mesma morte”) e, o que é provavelmente fundamental, com a faculdade de transmitir estes sentimentos. 
 
Se assim é, a “alma corporizada” do animal adquire o estatuto de sujeito (a consciência de si próprio não deve ser determinante para esta definição) e, em sequência, não pode ser entendida como uma simples “coisa” ao serviço do homem. Nesta circunstância, é legítimo considerar que existe no animal os atributos essenciais de uma pessoa. Ora, como é sabido, o quadro de valores da civilização ocidental sempre considerou como crime qualquer violência exercida sobre uma pessoa, dado que qualquer sujeito se sente de imediato identificado com o objecto dessa violência. A dedução lógica deste raciocínio é que qualquer violência executada sobre os animais, mesmo pelos motivos mais altruístas, deve ser assumida, em consciência, como um crime. Por fim, se se considerar que nunca foi admissível definir graduações no estatuto de pessoa, é-se obrigado a chegar à conclusão de que somos cúmplices de carrascos de uma permanente carnificina criminosa de proporções superiores às do conhecido Holocausto da II Guerra Mundial (é esta, diga-se de passagem, a analogia que Elizabeth Costello efectua, para fazer compreender a situação dos animais, e que tanto choca certas “almas sensíveis”).
 
É evidente que J. M. Coetzee não pretende, com estas conferências, apresentar uma resolução para as relações dos homens com os animais, mas apenas problematizar essas mesmas relações, levantando substanciais problemas morais.
 
Quando se recorda que a vida do homem e toda a economia mundial sempre assentou no morticínio de animais, tem-se plena consciência de como As Vidas dos Animais se aproxima dos universos da utopia. Mas será possível continuar a voltar a cara para o lado, fingindo que se desconhece, e aceitar como natural, depois de ler esta obra de J. M. Coetzee, o clamor indefeso de vida silenciosa que se ergue das pocilgas e dos aviários que nos alimentam?
 
Publicado no Público em 2000.
 
 
Título: As Vidas dos Animais
Autor: J. M. Coetzee
Tradução: Maria de Fátima St. Aubyn
Editor: Temas e Debates
Ano: 2000
134 págs., esg.
 
 
 
 


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