segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

FÉLICIEN MARCEAU

 
 
 
TEMPOS (APARENTEMENTE) LIGEIROS
 
Desde há alguns anos a esta parte que se generalizou a opinião de que o romance francês está em crise. Que, depois do “nouveau roman”, só um ou outro autor, já consagrado nos anos cinquenta ou sessenta e, por isso, com percursos literários esfumando-se actualmente na linha do horizonte, permanece importante. Que não há novos valores, que a mediocridade campeia, que se tornou uma das literaturas europeias mais desinteressantes nos dias de hoje.
 
É difícil ponderar estes juízos. Talvez assim seja, de facto. Mas, de qualquer modo, parece estranho que a literatura francesa, depois de ter tido um papel tão hegemónico e basilar na definição de gostos e tendências, tenha sombreado em tal apatia.
 
Em termos pessoais, duvido desta imagem que se faz da literatura francesa. Creio que o motivo desta “aparência” está na dimensão luxuriante do mundo editorial e literário francês. Isto é, este meio, repleto todos os dias de novos títulos, de prémios literários, de jovens autores, de diversas “saisons”, de casas editoras em permanente competição comercial, de revistas e publicações periódicas revelando constantes “genialidades”, tomou tais dimensões (só ultrapassado pelo universo editorial americano que também dá imagem semelhante de si mesmo), estabeleceu-se a tal ponto e definiu tão rigorosas “hierarquias” que provocou a “perdição” dos próprios produtores e analistas desse meio. Por isso mesmo, de forma permanente, se vê destacar obras literárias de facto inovadoras ao lado de outras que apenas são evidenciadas em consequência do labirinto de espelhos, de reverências irremediavelmente obrigatórias, que os “responsáveis” do meio literário francês criaram entre si.
 
 
O caso de Félicien Marceau é bem típico de tudo isto. De origem belga, este autor começou a publicar no finais da década de quarenta, impondo à sua obra um constante realismo balzaquiano, certeiro para efectuar um diversificado retrato dos costumes actuais franceses e para fazer, aqui e além, uma sortida também no romance histórico, temperando-o com um mais ou menos diáfano erotismo, muito sedutor e envolvente. Senhor de um estilo hábil e “humorado”, Félicien Marceau foi, pacientemente, elaborando uma obra já vasta em títulos, sempre sustentada por um quase ininterrupto sucesso de vendas e por um caloroso louvor crítico (a título de exemplo refira-se que Félicien Marceau já ganhou o Goncourt com Creezy, há já alguns anos traduzido para português). Tornou-se, deste modo, um autor respeitado e uma das mais elevadas referências no meio literário francês; mas ninguém poderá afirmar que Félicien Marceau, mesmo tão credenciado, tenha alguma vez produzido uma obra-prima ou que, seja de que forma for, tenha contribuído para a renovação das estruturas romanescas.
 
As Paixões Partilhadas, o seu último título, de imediato traduzido para português, não só evidencia bem esta mediania, como nada acrescenta de significativo à sua obra.
 
A acção do romance centra-se na descrição da vida de um casal, instituído nos anos trinta, e constituído por Cédric de Saint Damien, descendente de uma antiga família aristocrática do Languedoc, e Emmeline Ricou, filha de um grande comerciante, rapidamente enriquecido com a lª Guerra Mundial. Ao longo de vinte e nove capítulos, vemos como esta família, fundada nos valores aristocráticos, vai adequando o seu comportamento a um mundo adverso, abrindo as suas relações de amizade, criando imprevisíveis cumplicidades com o seu pessoal doméstico, instituindo um jogo amoroso que em silêncio admite os deleites das “fugas” à conjugalidade, e, enfim, como, de uma forma ao mesmo tempo convicta e leve, se vai esquivando aos espectros negros que a História lhes vai colocando no seu destino.
 
Sem sombras de dúvida que As Paixões Partilhadas pretende perpassar uma ligeireza que, a seu modo, reflecte uma alegria luminosa de viver e o prazer sereno dos pequenos gestos que provocam mudanças profundas nos modos de estar. No entanto, sendo um romance de fácil e até agradável leitura, não deixa de transmitir ao leitor a convicção de que toda a motivação que lhe deu origem é eminentemente fútil. Não será este romance, tão louvado pela crítica local, a prova cabal de que existe uma “mecânica perversa” no meio literário francês?
 
 
Publicado no Expresso em 1988.
 
 
Título: As Paixões Partilhadas
Autor: Félicien Marceau
Tradutor: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Gradiva
Ano: 1988
221 págs., 8,56 €
 



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