sábado, 13 de fevereiro de 2016

HORACIO QUIROGA

 
 
 
 
PESADELOS EXEMPLARES
 
 
Na maior parte das vezes, quando aparecem referências à literatura latino-americana, há uma certa tendência em a amalgamar num todo indistinto. Creio que esta tendência acentuou-se com o chamado “boom” dos anos setenta (as personalidades literárias que deram rosto a este fenómeno eram, de facto, oriundas de diversos países da América Hispânica) e com a propensão para tipificar de uma forma homogeneizante esta produção narrativa. Não admira, por isso, que, mesmo sendo bem editada no nosso país, o leitor português tenha decerto alguma dificuldade em ter uma visão rigorosa de cada uma das literaturas nacionais que a integram e, em particular, sobre a importância que elas têm no seu todo. E este facto é tanto mais estranho quanto se pode afirmar com segurança que muitas destas literaturas nacionais tiveram uma maior relevância para a história literária do século XX que muitas literaturas europeias.
 
É natural, por isso, que muitos leitores portugueses, perante uma obra de um autor, por exemplo, uruguaio, se interroguem sobre o que conhecem da literatura que o enquadra. No entanto, basta recordar os nomes de Augusto Roa Bastos, Juan Carlos Onetti e Mario Benedetti, para compreender que esta literatura, apesar de uma acentuada rivalidade portenha, se tem disposto como uma espécie de constelação em redor da produção literária argentina e do pólo de irradiação cultural que tem sido a cidade de Buenos Aires. E esta situação concreta permite perceber como as diversas literaturas nacionais, que integram a chamada literatura latino-americana, se têm afirmado num processo centrífugo em relação a certas capitais (é o caso de Buenos Aires, Santiago do Chile, Bogotá, Havana e México), que têm funcionado, com a sua forte afirmação cultural, como locais de “fermentação” literária. 
 
Estas considerações vêm a propósito da edição, no nosso país, de uma colectânea de contos, intitulada Contos de Amor, Loucura e Morte, do escritor uruguaio Horacio Quiroga, que é considerado, tanto por argentinos como por uruguaios, como o fundador do conto moderno na literatura hispano-americana. Este escritor, depois de uma malograda tentativa nos domínios da poesia, logo no princípio do séc. XX, dedicou toda a sua vida literária à produção narrativa, em particular, ao conto. É indiscutível, desde o início, que a actividade literária de Horacio Quiroga é muito influenciada pelas narrativas de Edgar Allan Poe e, de seguida, pela obra de Joseph Conrad (principalmente pela sua visão da Natureza, uma vez que esta aparece também na obra de Horacio Quiroga como uma força maléfica ou que, pelo menos, testa a fibra moral dos homens). Até 1935, publicou cerca de uma dezena de obras narrativas, obtendo algum reconhecimento dos meios intelectuais, mas sem nenhum sucesso de vendas. Aliás, a sua vida, que transcorre entre Buenos Aires e uma região próxima da fronteira argentina-brasileira-uruguaia (Misiones), nos limites da selva, onde se dedica à actividade agrícola e comercial, foi continuamente marcada por falências, por uma crónica insuficiência económica e por um destino pautado por vários factos trágicos (é impressionante o número de familiares seus que se suicidam ou que morrem com acidentes de armas de fogo). Por fim, ele próprio, com cinquenta e nove anos, à beira da indigência e com um câncro, suicida-se em 1937.
 
Sem ser considerada a colectânea de contos mais importante (em geral é assim entendida a obra seguinte, intitulada Cuentos de la Selva), Contos de Amor, Loucura e Morte contem algumas peças que são indiscutíveis obras-primas e é bem exemplar para caracterizar as ambiências narrativas de Horacio Quiroga. Logo à primeira leitura se percebe que a maior parte destes contos se integra no género “fantástico”. Mas, no cenário sul-americano, o conceito de “narrativa fantástica” inevitavelmente se torna mais elástico e abrangente, diluindo as suas fronteiras com a narrativa realista (um bom exemplo deste facto está no conto “Os Pescadores de Vigas” desta colectânea): na maior parte das vezes, e a obra de Horacio Quiroga videncia bem este aspecto, o que demarca os dois tipos de narrativa é a perspectiva com que se trata determinado tema, acentuando-se, no caso da narrativa fantástica, a componente irracional da causalidade da trama.
 
Esta componente irracional, na obra de Horacio Quiroga, faz parte integrante do sentido do destino, dando-lhe, por isso mesmo, uma dimensão não só trágica como até terrífica. Neste aspecto, somos obrigados a reconhecer que esta visão trágica do destino está entralaçada com a própria experiência de vida de Horácio Quiroga e com o seu percurso excepcionalmente nefasto. De certo modo, a loucura e a morte aparecem sempre, nesta colectânea, como o fio de horizonte para onde todas as personagens são empurradas por “fracturas” de carácter, levando-as para situações assombradas pelos seus mais íntimos espectros. A dependência afectiva, a degradação moral, a ambição, o orgulho, a debilidade mental, etc., originam situações onde sempre a Natureza (e, em particular, a selva), com a sua pujança destrutíva, irrompe como anjo justiceiro, outorgando este estatuto trágico ao destino. 
 
Um aspecto peculiar da obra de Horacio Quiroga está relacionado com o importante papel que têm nela os animais. Estes animais, que aparecem nos seus contos muitas vezes como personagens principais, mesmo que “humanizados” em termos emocionais, mantêm, através de diversos artíficios narrativos, a sua perspectiva (toda a trama narrativa é colocada na óptica do animal), conferindo-lhes uma dimensão de fábula (alguns dos contos mais magníficos desta colectânea têm esta peculiaridade, como é o caso de “A Insolação” e de “Yaguaí”). No fundo, um dos objectivos subjacentes a estes contos com animais é o de reforçar a ideia de que emana da própria Natureza essa inevitabilidade trágica do destino.
 
Para quem desconhece a figura literária de Horacio Quiroga, este Contos de Amor, Loucura e Morte, pela sua elevada qualidade narrativa e pela forma como aborda certos temas, vai revelar-se como uma invulgar surpresa. Por isso, há que salientar a coragem de uma recente editora, como é a Cavalo de Ferro, por arriscar publicar, numa edição cuidada e com uma boa tradução, um autor que, sendo um clássico para a literatura latino-americana, era ainda quase por completo desconhecido no nosso país.
 
Publicado no Público em 2003.       
 
 
Título: Contos de Amor, Loucura e Morte
Autor: Horacio Quiroga
Tradução: Ana Santos
Editor: Cavalo de Ferro
Ano: 2003
161 págs., € 10,00
 


 
 
 



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