quarta-feira, 7 de setembro de 2016

AMOS OZ

 
 
 

O CONHECIMENTO PELA PIEDADE
 
Até há algumas décadas atrás, um autor judeu era uma entidade que o leitor facilmente reconhecia: havia sempre uma acentuada componente religiosa, um pouco exógena, que, mesmo nos autores laicos, funcionava como estigma; um ascendente do cimento comunitário, resultante da situação de minoria segregada, mas também da demarcação face aos “gentios” cristãos; um sentido histórico de redenção do mundo, associado a uma propensão para a culpa e para o sacrifício, etc. Além disso, o escritor judeu do pós-guerra sentia uma exigência obsessiva em exorcizar o Holocausto, em nome não só das vítimas, mas também dos carrascos.
 
Hoje é nítido, desaparecidos os condicionalismos culturais e materiais que originaram o “ghetto”, que a civilização ocidental, com a sua vocação omnívora, conseguiu diluir nas suas componentes essa “sensibilidade judaica”, plausivelmente, porque nada existia de muito distinto, e ainda menos de inconciliável, entre a civilização ocidental e a referida “sensibilidade”, O estatuto de judeu afirma-se, pelo contrário, como uma das vertentes mais cosmopolitas da cultura ocidental. Não é por acaso que os poucos escritores que hoje reivindicam esse estatuto lhe dão um valor simbólico: o de nómada entre culturas, de resistente passivo à ordem dos Estados.
 
A própria literatura israelita reflecte hoje esta situação: em muitos dos seus escritores é irreconhecível essa “sensibilidade judaica” - pelo menos na sua acepção tradicional - e, se ressalvarmos o específico contexto político e social, pouco ou quase nada os distingue de autores de outros parâmetros culturais.
 
É o caso de Amos Oz, o autor de Conhecer Uma Mulher. Pertencente a uma geração que esteve implicada na Guerra da Independência, contribuiu, em particular com Abraham B. Yehoshua e David Shahar, para a crescente audiência internacional da literatura israelita, sendo hoje um escritor excepcionalmente premiado (ainda há dias obteve mais um prémio na Feira de Frankfurt). A sua obra, iniciada na década de sessenta, procurou problematizar a afirmação individual numa sociedade consolidada em redor de valores éticos e religiosos e que utiliza esses valores, como um verniz hipócrita, para procurar dar legitimidade a atitudes inumanas e brutais, como as que tem assumido com a comunidade palestiniana.
 
No entanto, os seus mais recentes romances entraram, sem se tornarem autobiográficos, num registo mais intimista e pessoal. Em Conhecer Uma Mulher, por exemplo, só vagamente se alude as circunstâncias políticas que hoje se vive em Israel, com referências aqui e além a uma “internacional terrorista” aliada aos palestinianos, à guerra do Líbano, à tensão social nas regiões ocupadas, ao receio de incorporação no exército.
 
A personagem principal deste romance é um agente secreto israelita, de meia-idade, que, no regresso de uma das constantes viagens que efectua para todos os cantos do mundo, é informado que a sua mulher morreu electrocutada, em circunstâncias obscuras, em sua casa.
 
Não julgue, contudo, o leitor, com esta síntese da trama, que está em presença de uma obra no estilo das de John Le Carré. O que interessa a Amos Oz é construir uma personagem que, por razões profissionais, sempre se habituou a tentar desvendar aquilo que está para lá da aparente opacidade da realidade e que, perante a morte da mulher, sente necessidade de utilizar essa experiência para descobrir as formas como se organiza e se equilibra, de um modo instável, a existência. Tanto mais que, percebe agora, foi um logro, em nome do interesse colectivo, o seu esforço de análise de uma realidade que não passava de uma imagem política forjada e que, ao invés, tenham ficado (e continuem a ficar) como verdadeiras incógnitas os membros da sua família: os prazeres partilhados, os projectos individuais, os isolamentos cíclicos, os terrores, até a própria doença foram para ele um mero fogo existencial que se consumiu por si.
 
Por isso, reforma-se, aluga uma nova casa, onde vai viver com a filha, a mãe e a sogra, e prepara-se, portanto, como forma de “luto”, para entender o irreparável. Mas o seu esforço de decifrar na memória sentidos impossíveis não lhe abre a concha da realidade: disponível, abandona-se a trabalhos caseiros desnecessários, a aceitar com resignação os apelos e os desejos dos que dele se aproximam. Transforma-se em espectador distanciado do circuito de “exaltações e humildades” com que o tempo inebria as pessoas, à espera que algum dia as peças da existência se comecem a encaixar, dando-lhe o almejado e serenante “conhecimento”.
 
Até que um acidente - o assassínio de um colega numa missão que ele deixou incompleta e que se recusara a concluir - fá-lo descobrir o que já sabia: não há conhecimento possível. E essa violenta descoberta provoca-lhe uma intensa piedade por si e pelos outros. Mas percebe também que este sentimento, incómodo e perigoso, lhe trouxe a chave da conciliação com a condição humana, levando-o mesmo a acreditar que, deste modo, algum dia, possa vir um “fulgor das profundezas da escuridão”.
 
Conhecer Uma Mulher reflecte, assim, a situação de um homem incapaz de continuar a defender-se com argumentações de uma soberania omnisciente. Alguém que aceita viver com a imensa opacidade que cobre o mundo, sabendo que a precaridade e o nevoeiro das incertezas são o quinhão universal. Talvez, por isso, o leitor sinta o desejo de pressentir neste romance um bom prenúncio: algo pode estar a mudar, em termos colectivos, em Israel.
 
 
Publicado no Público em 1992.
 
 
Título: Conhecer Uma Mulher
Autor: Amos Oz
Tradutor: Luísa Feijó e Maria João Delgado
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
377 págs., esg.
 
 


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