sábado, 17 de setembro de 2016

TAMA JANOWITZ

 
 
 

UMA TERNA CANIBAL EM MANHATTAN
 
Na última década de oitenta, sucedeu um acontecimento civilizacional que, à distância de uns meros vinte anos, parece já diluir-se na bruma dos tempos… Mas foi nessa década que Nova Iorque se tornou a metrópole primordial da irradiação de modelos socioculturais e a grande referência mundial em termos de criatividade artística, superando neste papel as cidades de Londres (da década de setenta) e de Paris (da década de sessenta). Hoje torna-se evidente que este acontecimento reflecte uma mutação decisiva na história da humanidade: é a primeira vez que o foco principal de irradiação de modelos culturais e civilizacionais deixa de se situar na Europa e se estabelece no chamado Novo Mundo. Além disso, este acontecimento reflecte também a supremacia dos meios de difusão das formas de cultura popular urbana em relação aos meios tradicionais de difusão da cultura erudita. Por último, deve ainda ser salientado que, em consequência da continuação do estatuto hegemónico da língua inglesa no contexto universal, não se vislumbra, apesar do evidente declínio económico e político dos Estados Unidos, que apareça uma nova metrópole que, com toda a evidencia, retire a Nova Iorque o estatuto que conquistou na referida década de oitenta…
 
Estas reflexões - que são uma simples constatação do óbvio – são importantes para compreender o destino literário da escritora que agora nos ocupa: Tama Janowitz. De facto, o seu destino “encavalitou-se” na mutação acima referida e, em grande parte, o interesse suscitado pela sua obra derivou do fascínio mundial pelas novas formas de sociabilidade que pareciam na altura brotar um pouco por toda a cidade de Nova Iorque…
 
Esta autora nasceu em 1957, em São Francisco, mas cedo foi viver com a sua mãe (os seus pais separaram-se, ainda Tama Janowitz era uma criança) para Nova Iorque, onde fez toda a sua formação nos domínios da Escrita Criativa. Nos inícios da década de oitenta, publicou o seu primeiro romance, American Dad, com fortes componentes autobiográficas, que obteve algum reconhecimento da crítica. De seguida, escreve vários romances, que não consegue publicar, até que decide apostar num outro tipo de estrutura – uma colectânea de contos articulados de diversas formas – a que dá o nome de Slaves of New York e que publica em 1986. Como é sabido, esta obra obteve um tremendo sucesso, não só da crítica, mas principalmente do público, atingindo vendas astronómicas nos Estados Unidos e sendo traduzida em quase todas as línguas do mundo. Tama Janowitz ascendeu assim ao estatuto de verdadeira vedeta literária, com toda a comunicação social a procurar entrevistá-la e conhecê-la… Passou então a ocupar, nesses últimos anos da década de oitenta, um lugar permanente no “jet-set” cultural nova-iorquino (acompanhada pelos escritores Breat Easton Ellis e Jay McInerney e “apadrinhada” por Andy Warhol), tornando-se uma presença constante nas festas mundanas e na vida nocturna da cidade.
 
Talvez convenha lembrar – tendo em conta a presente distância temporal – quais foram os motivos de tão tremendo sucesso. Não há dúvida nenhuma que foi resultante de dois factores: primeiro, a descrição da vida de uma certa população nova-iorquina (galeristas, artistas plásticos, escritores, publicitários, investigadores universitários, etc.) que tinha comportamentos privados e públicos que apareciam como uma “novidade escandalosa” no “exterior” deste universo; segundo, porque esta descrição é realizada num estilo “ligeiro” e notoriamente “amoral” (recordo que há quem considere – a meu ver de forma injusta - que Tama Janowitz é uma das fundadoras daquilo que, algum tempo depois, se veio chamar literatura “light”). Hoje torna-se bem evidente que era determinante na obra de Tama Janowitz uma constatação social que, na sua produção literária posterior, vai aparecer como uma constante referência: a de que existe uma fronteira ténue entre a chamada pequena marginalidade (prostitutas, “clochards”, burlões de rua, “dealers” e toxicodependentes) e os que se colocam intencionalmente à margem do sistema produtivo com o intuito de desenvolver as suas potencialidades criadoras e “aproveitar” as eventuais oportunidades que o próprio sistema lhe concede como “criativos”.
 
Em Portugal, tal como no restante mundo, também a obra de Tama Janowitz foi um sucesso. Isso deve-se, sem sombra de dúvida, à atenção de um editor que, desde sempre, tem revelado argúcia em perceber aquilo que se publica no exterior de aliciante para o público nacional; e ao trabalho de tradução de Carlota Pracana que conseguiu “passar” para a nossa língua o estilo coloquial da autora.
 
Porém, já na altura, havia quem considerasse que grande parte do sucesso da obra derivava mais de circunstâncias do foro sociológico do que por motivos apenas literários. E que, por isso mesmo, o sucesso de Escravos de Nova Iorque não reflectia o efectivo aparecimento de uma grande escritora.
 
Os romances que Tama Janowitz publicou depois, durante o resto da década de oitenta e na seguinte (A Cannibal In Manhattan, The Male Cross-Dresser Support Group e By The Shores Of Gitchee Gumee), pareciam dar razão aos que defendiam esta última tese. De facto, não só não obtiveram, nem de perto nem de longe, o sucesso de Escravos de Nova Iorque, como a crítica foi apontando, por sistema, um “olhar” da autora demasiado superficial. Denunciava, por exemplo, um humor fácil em excesso (“grotesco”, “exagerado”, “personagens histéricas e inverosímeis”, foram os adjectivos com que etiquetaram estas obras), mas, em particular, a dificuldade em articular o tom de sátira social – que as personagens, pelo seu comportamento desajustado em relação à realidade, enfatizavam – com a intenção, em contraponto, de “humanizar” situações, inserindo-as, de forma plausível, num contexto urbano e procurando justificá-las com um meio dilacerantemente competitivo e que desfigura qualquer forma de saudável sociabilidade.
 
No entanto, mesmo não atingindo os extraordinários efeitos comerciais de Escravos de Nova Iorque, os últimos romances de Tama Janowitz, A Certain Age e Peyton Amberg, voltaram a reconciliá-la com a crítica e com o público. Basicamente, os dois romances tratam do mesmo tema: a busca das protagonistas (no primeiro romance, uma mulher com pouco mais de trinta anos; no segundo, outra com cerca de cinquenta) em se afirmarem em termos sociais e adquirirem um estatuto de maior destaque (através da “conquista” de um marido rico, no primeiro caso; através do esforço ansioso em se manter sedutora, no segundo) num mundo dominado pelos homens.
 
De certo modo – e a critica referencia muito este aspecto – as novas protagonistas dos recentes romances de Tama Janowitz são o sucedâneo de uma das personagens principais (Eleanor T) de Escravos de Nova Iorque, agora já mais velhas e com ambições diferentes. De facto, enquanto Eleanor T, mesmo com um comportamento sujeito às flutuações de uma atribulada vida afectiva, orienta a sua ambição para adquirir um lugar de destaque no meio artístico, as personagens dos últimos romances já apenas ambicionam conquistar um estatuto social através do seu corpo e do charme feminino.
 
Em jeito de balanço, talvez já se possa afirmar que o percurso literário de Tama Janowitz comprova que não era nem se tornou uma das figuras centrais da sua geração no universo literário americano; mas, por outro lado, também não se deve considerá-la como uma escritora de uma “única” obra com mérito literário e que, de forma quase acidental, obteve com ela um gigantesco sucesso comercial. Creio que o juízo mais acertado é considerar Tama Janowitz como uma interessante cronista dos comportamentos socioculturais e afectivos da população nova-iorquina, principalmente feminina. Os seus romances têm demonstrado que a autora possui um olhar arguto na compreensão das motivações dessa população, captando as suas posturas sofisticadas e os jogos de ilusões em que se enredam, como – parafraseando um título de uma obra sua – um “canibal” terno e irónico que se “alimenta” dos destroços de quimeras e revela as misérias quotidianas que essas mulheres (e homens), numa procissão fantasmagórica e absurda, vão despojando pelas ruas e avenidas “glamorosas” e frias da Big Apple.
 
Publicado na web em 2009.
 
 
Título: Escravos de Nova Iorque
Autor: Tama Janowitz
Tradutor: Carlota Pracana
Edição: Teorema
Ano: 1989
329 págs., € 15,75
 
 


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