domingo, 27 de agosto de 2017

RAINER MARIA RILKE

 
 

A SOLAR ALEGRIA

 
Com a publicação de mais este livro, Rilke passará, decerto, a ser o escritor alemão que, de forma mais completa, foi traduzido para português: mesmo considerando que tal se deve ao excepcional empenho do Prof. Paulo Quintela, creio que isto exprime bem o prestígio que este poeta adquiriu no nosso país.

 
Histórias do Bom Deus, que, como refere o editor, foi retirado do volume Prose das suas obras completas, inclui um conjunto diversificado de textos, divididos em três grupos (“Relatos de Juventude”, “Fragmentos em Prosa” e “Histórias do Bom Deus”), de valor artístico díspar (note-se que vários são os textos de “atelier”, isto é, que não foram inteiramente “explorados” para eventual publicação), mas que têm o mérito de radiografarem a evolução técnica e de problemática de um dos autores mais determinantes para a caracterização da sensibilidade e do gosto contemporâneos.

 
Estes textos revelam as indecisões de Rilke entre uma técnica narrativa de tónica naturalista (notório em alguns contos de “Relatos de Juventude” e, em particular, nalgumas passagens de “Dois Contos de Praga”) e um impressionismo estilístico que o autor vai desenvolver em narrativas de outro fôlego (como, por exemplo, em Os Cadernos de Malte Laurids Brigge) e que, neste volume, já aparece sem equívocos, em “Histórias de Bom Deus”.

 
É bem difícil, num conjunto tão heteróclito de textos, estar a fazer uma análise das suas componentes temáticas e estéticas. Creio, no entanto, que é destacável uma constante que, nos seus textos poéticos (principalmente no Livro de Horas e em Poesias Novas) vai ter uma mais plena e crucial expressão.

 
Estou a referir-me à concepção da Natureza em Rilke. De facto, o poeta integra, em cada objecto ou entidade natural, um universo de significações que os transforma numa espécie de “caixa chinesa”. Assim, todas as coisas são, antes do mais, uma “imagem subjectiva”, apreensível de forma empática e situável na memória individual, e correspondendo, por conseguinte, a uma ordem pessoal do universo. Essa subjectivação da natureza, tanto mais intensa quanto maior for a sintonia sensível, funciona, em termos poéticos, como um real efectivo com potencialidades metafóricas e analógicas inesgotáveis.

 
É do acidental, das “pequenas coisas” carregadas de sentido - tanto ou mais do que das grandes paixões que, obviamente, são muito mais indomináveis e inacessíveis -, que se retira o prazer estético, essa perene alegria que é o “sangue da existência”. No entanto, uma aguda consciencialização da precaridade e da morte (repare-se como são inúmeras as personagens que, de uma ou de outra forma, foram tocadas pela morte) reforça essa convicção de que a beleza absoluta está em exclusivo na natureza e na existência. É por isso que todos estes contos e narrativas parecem nascer de um lugar de morte e se constroem como uma deslocação para um espaço de alegria solar e de intensa apetência pela vida.

 
O misticismo panteísta, que se revela em vários textos, mas que é bem explícito em “Histórias do Bom Deus”, é a consequência lógica de toda esta concepção do universo. A identificação Deus/Natureza é o corolário da certeza de que todo o acidente, no limite das suas significações possíveis, é também uma manifestação do sentido último.

 
Dadas as caraterísticas destes textos, é lamentável que esta edição tenha uma composição e paginação que os “sufoque”, ao “colá-los” uns a seguir aos outros. Parece-me de todo errado ter-se optado por uma excessiva economia de espaço, quando, com um ligeiro esforço de investimento e um não muito expressivo aumento do preço de capa, se poderia apresentar estes textos de uma forma mais adequada à plena afirmação da sua qualidade estética.

 

Publicado no Expresso em 1989.

 

  

Título: Histórias do Bom Deus e Outros Textos
Autor: Rainer Maria Rilke
Tradutor: Maria Gabriel Cardote
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1989
359 págs., esg.
 
 

 

 

 




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