domingo, 19 de novembro de 2017

WILLIAM GOLDING

 
 
 

O DESPERTAR DO MEDO
 
A receptividade da crítica e do público à obra ficcionista de William Golding tem-se revelado bastante irregular e são, sem dúvida, resultantes dessa flutuação, as objecções à concessão do Prémio Nobel a este autor. Mas perante a dimensão criativa, no contexto da literatura inglesa e universal, do seu primeiro romance, O Deus das Moscas, agora reeditado pela Portugália, numa excelente tradução de Luís de Sousa Rebelo, toda esta discussão “cosmopolita” se revela bem irrelevante.
 
Remetendo para uma longa tradição inglesa (que vem desde Swift e Defoe), William Golding constrói uma parábola que pretende situar as motivações para o social do Homem: um grupo de crianças, em consequência da queda de um avião, encontra-se perdido numa ilha deserta e paradisíaca, e é obrigado, para sobreviver, a gerar uma sociedade, em que a “adulta”, a estabelecida, só existe como reminiscência desejada.
 
Um búzio, tocado por Rafael, reúne os sobreviventes e motiva a primeira assembleia que estabelece o objectivo social fundamental - manter sempre acesa uma fogueira como sinal de existência para o exterior e para a salvação -, tornando-se na representação simbólica do poder: aparecem assim as primeiras instituições orientadas para atingir um objectivo colectivo.
 
Mas, passado um primeiro momento de certeza e de felicidade, o “medo” do que não se entende, a “fera” desconhecida que torna todos perecíveis, alastra por todo o grupo, fazendo rebentar conflitos que até aí estavam apenas latentes e que gangrenam os ainda mal delineados corpos sociais.
 
Face a este espectro, duas atitudes existenciais se confrontam: uma, representada por Rafael, que pretende, nunca perdendo de vista os objectivos sociais definidos, colocar dentro dos limites de uma certa racionalidade a própria dinâmica produzida no grupo pelo medo; a outra, representada por Jack, que, ritualizando o desejo sangrento de matar, pretende obliterar, de um modo irracional, todos os terrores.
 
Esta última atitude, embriagando o grupo num festim de sangue e fogo, faz desabrochar instintos primordiais e revela-se mais forte e anímica pelo gozo brutal que transmite de asfixiar o que não se entende. Os naturais inimigos desta atitude são, por isso, inconscientemente eliminados: Simão ou a capacidade de tornar inteligível o que os outros temem mesmo formular; Bucha ou a capacidade criativa e pragmática de concertar as energias colectivas.
 
Simão, de um modo profético, intuíra qual a fera que todo o grupo temia: a aparente soberania do acto de matar e o destemor irracional perante a morte, ocasionando o desrespeito pelo Outro como necessário desconhecido. Era este o deus das moscas que existe em cada um e que, desde que se transforme em dominante em termos colectivos, leva à consumação da racionalidade que fundamenta o social: a perseguição de Rafael, garante fiel da fogueira, e a devastação da ilha são o inevitável culminar de todo este processo.
 
É supérfluo, portanto, o pessimismo que apontam estas páginas de William Golding. É natural que a ascensão de formações socio-políticas totalitárias e a própria II Guerra Mundial tenham condicionado, pela ambiência produzida, a gestação deste romance. Mas o que nele ressalta é a caracterização pertinente do que mais profundo existe na própria dinâmica socio-política - e, neste aspecto, torna-se um contraponto interessante à obra de Orwell.
 
Saliento, por fim, o importante prefácio de Luís de Sousa Rebelo, situando O Deus das Moscas no contexto da literatura inglesa e analisando-o com rigor. Pena é que esta reedição apressada não tenha permitido reactualizar um texto com mais de vinte anos.
 
Publicado no Expresso em 1984.
  
Título: O Deus das Moscas
Autor: William Golding
Tradução (e prefácio): Luis de Sousa Rebelo
Editor: Portugália Editora
Ano: 1984
266 págs., esg.
 
 


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