quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

GORE VIDAL 2

 
 
 
O LASTRO ONTOLÓGICO
  
Talvez devido à dimensão exótica e intrigante de certas épocas, resultante da distância temporal, o romance histórico goza hoje de uma sólida popularidade, proliferando, um pouco por todo o lado (e até em Portugal, onde estas coisas aparecem sempre um pouco tardiamente), os cultores de um género que conhece uma excepcional voga editorial — mesmo se, na generalidade, os resultados sejam bem aquém das expectativas.
 
Mas, sem retirar legitimidade à exploração, por si só, desta dimensão exótica e intrigante, não há dúvida que a ficção histórica mais estimulante é aquela que se assume, sem sofismas, como um continente adequado ao conjunto das inquietações pessoais do autor (e, naturalmente, vem-nos sempre à lembrança esse paradigma que é Memórias de Adriano de Marguerite Yourcenar), ou então, tal como na obra de Gore Vidal, que encara a sua componente temporal como instrumento privilegiado de compreensão da historicidade.
 
O romance deste autor agora publicado, Criação, integra-se, com Juliano, o Apóstata e outros, numa vertente da produção literária de Gore Vidal que, em complementaridade à sua “ficção política” (da qual foi editado há pouco o romance Washington, D. C.), procura compreender os valores determinantes e mais primordialmente subjacentes ao mundo contemporâneo.
 
Criação é um romance que, de imediato, impressiona pela ambição. Uma obra de seiscentas páginas, que desenvolve a sua acção no séc. V A. C., e em redor de personagens tão fundamentais como Pitágoras, Heródoto, Sócrates, Péricles, Zoroastro, Buda e Confúcio, provoca no leitor uma razoável desconfiança, em particular, porque o alarma para uma leviana tendência ahistórica de certa “intelligentsia” americana. Realmente é bem pouco provável que algum escritor europeu encarasse, com sensatez, um projecto de tamanha pretensão...
 
Contudo, e é o mínimo que é possível afirmar, não se pode dizer que Gore Vidal saia destroçado deste projecto. Genericamente, o romance caracteriza com rigor, e de modo fundamentado, a ambiência da época; e se existem, de quando em vez, alguns deslizes de construção (por vezes, certo ênfase propositivo transparece nos diálogos, evidenciando o seu carácter de mero artifício de exposição), eles não obstam a que a narrativa seja, quase sempre, empolgante, e a que a acção se mantenha bem verosímil e encadeada.
 
A acção resume-se à biografia de um persa, Ciro Spitama, neto de Zoroastro e embaixador itinerante de Dario e Xerxes no Ganges e na China, ditada a um seu sobrinho de formação grega, Demócrito. Este destino, entre várias peripécias, vai permitir-lhe contactar com figuras basilares do pensamento oriental e ocidental e, obsessivamente, interrogá-las sobre a sua concepção da origem do mundo e da vida.
 
Ao construir o romance como uma longuíssima fala de um persa a um grego, existe já, em Gore Vidal, uma opção bem reveladora. De facto, esta construção vai permitir que, com plausibilidade, se coloquem na boca do persa as críticas mais radicais à civilização grega, determinando o que nesta existe de deslizante perda para o Ocidente: o abdicar de uma interpretação mítica e abrangente do universo pela tendencial sobrevalorização do “logos”.
 
Por outro lado, ao definir a personagem principal como um persa estreitamente ligado à religião zoroastrista, o autor vai orientar o romance segundo uma dupla direcção narrativa: primeiro, tornar inteligíveis as inúmeras correlações existentes nas grandes religiões orientais que pretendem uma harmonização (e não uma explicação) do homem com a natureza, quer através da definição de uma praxis que o relativize na ordem social e cósmica (Confúcio), quer através de uma integração da precaridade da morte no ciclo renovador da vida (Buda); segundo, sublinhar a importância civilizacional da concepção da dualidade primordial (o Bem e o Mal) que, vinda de Zoroastro, se desloca para a Gnose e, depois, para o Cristianismo.
 
Neste sentido, Criação distancia-se da tendência maior da reflexão neste século que principalmente tem evidenciado o excessivo “peso” da tradição judaico-cristã nas formulações da contemporaneidade. De facto, o que neste romance se torna mais saliente é o papel das concepções religiosas que, na sua procura de absorver a “opacidade cosmológica”, têm contribuído para que o homem, mesmo perdendo sempre qualquer coisa em cada doutrina e deixando atrás de si um lastro de resíduos teóricos, tenha conseguido subsistir com a sua radical angústia ontológica e, ainda assim, construir sentidos conjunturais para a sua existência.
 
Note-se, por fim, que se observa nesta edição uma revisão menos cuidada (ao contrário daquilo a que esta editora nos tem habituado), por conseguinte, algumas gralhas e, aqui e além, uma pontuação de todo absurda. Mas demos o benefício de que é difícil manter um constante rigor numa obra tão vasta e esperemos que numa futura reedição (e este romance merece-o) estas pequenas falhas desapareçam.
 
Publicado no Expresso em 1989.
  
 
Título: Criação
Autor: Gore Vidal
Tradutor: Carlos Leite
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1989
604 págs., esg.
 
 



Sem comentários: