domingo, 8 de julho de 2018

SAUL BELLOW 2

 


ALGUÉM CHORA POR NÓS
 
 
A um certo passo, em Agarra o Dia de Saul Bellow, um velho médico burlão, que pretende continuar a “enrolar” a personagem principal, Tommy Wilhelm, diz, ao tentar convencê-lo da pertinência do projecto deste de separação e divórcio: ”Porque a deixa fazê-lo sofrer assim? (...) Não faça o jogo dela. (...) Quero dizer-lhe, não case com o sofrimento. Há quem o faça. Casam com ele, e dormem e comem juntos, como marido e mulher. Se deixam entrar a alegria pensam que é adultério.” E mais adiante, comentando a realidade que o circunda: ”Sete por cento deste país estão a suicidar-se por meio do álcool. Outros três, talvez, narcóticos. Mais sessenta que escorregam para o pó por meio do tédio. Mais vinte que venderam a alma ao demónio. E, então, há a pequena percentagem daqueles que querem viver. E essa é a única coisa com significado em todo o mundo de hoje. Esses são apenas os dois tipos de pessoas que há. Alguns querem viver, mas a grande maioria não. (,,,) Digo-lhe mais — continuou —, o amor dos moribundos resume-se a uma coisa: querem que morramos com eles. É porque nos amam. Não nos enganemos.”
 
Este longo “discurso”, colocado ironicamente na boca de um charlatão, sintetiza o quadro que ensombrece toda esta obra de Saul Bellow.
 
Tommy Wilhelm encontra-se a meio da sua vida e sente-se totalmente falhado. Repudiado pelo pai, abandonou mulher e filhos, não conseguiu afirmar-se como actor de cinema, sentiu-se obrigado, em termos morais, a abandonar o emprego, investiu o pouco dinheiro que ainda tinha na Bolsa de Mercadorias e perdeu-o. Vive num hotel, com as contas por pagar, sem amigos, e, principalmente, de todo descrente em relação a si próprio. Tommy Wilhelm, quer queira ou não, casou-se com o sofrimento.
 
É por isso que, ao fazer um balanço da sua própria vida, durante vinte e quatro horas, Tommy Wilhelm, desvenda um dos mais cruéis sintomas da sociedade americana: envolvidos em tantos estímulos de afirmação e consumo, convencidos de que o querer desliza sem atritos nesta sociedade, os homens desfazem e refazem as suas vidas, diluindo-se na névoa dos dias sem deixarem qualquer rasto.
 
Talvez em Portugal não se tenha ainda evidenciado a importância de Saul Bellow, provavelmente o escritor americano mais saliente do pós-guerra. A obra deste autor (vasta, com diversas fases distintas, galardoada com o Prémio Nobel, e donde se destaca este Agarra o Dia, para muitos críticos considerado como a sua obra-prima) não passa de um longo monólogo de um sujeito que ambiciona a omnisciência do lugar, mas que, perante a irrazão dos actuais mecanismos sociais, se sente desagregado e perdido.
 
É este o ponto de partida que origina uma das visões mais pessimistas da sociedade americana que alguma vez foi escrita: quando Tommy Wilhelm, no final das suas deambulações de um dia avassaladoramente depressivo, se encontra, por acaso, no funeral de um desconhecido, e rebenta numa crise de choro, aquilo que ele chora é a total inutilidade do destino do homem contemporâneo. Mas Saul Bellow sabe (e consegue transmitir-nos essa sensação, ao encerrarmos esta novela) que o verdadeiro horror chegará quando a crise de choro passar, quando Tommy Wilhelm abandonar aquele funeral de um individuo que, de um modo anónimo, personifica o irremediável e universal sem sentido da própria existência.
 
Publicado na revista Ler em 1987.
 
 
Título: Agarra o Dia
Autor: Saul Bellow
Tradutor: Bernardo Antunes Navarro
Editor: Fragmentos
Ano: 1987
112 págs., esg.
 
 

 


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