A PRESENÇA LARVAR DA MORTE
A imbricada aculturação de uma
milenar tradição índia, já, em grande parte, desfigurada pela colonização
espanhola, com uma desconexa integração no mundo moderno deu ao México a imagem
de um subúrbio exótico. Essa realidade, perpassada, ao
mesmo tempo, pelo mais vincado ruralismo e por uma importação maciça dos
valores urbanos da sociedade norte-americana, transformou-se num campo de contradições
extremas que sobressaem como um rugoso relevo na história contemporânea do México.
E
atingiram
tal grau de intensidade que toda a
realidade mexicana parece ser possuída por uma presença larvar da morte: os conflitos
sociais e intersubjectivos têm, por isso, uma constante dimensão telúrica, de
um confronto de forças pré-conscientes.
Uma realidade com semelhantes características
exerceu, como é natural, enorme fascínio sobre a literatura contemporânea
(recorde-se, por exemplo, os casos de D.H. Lawrence e de Malcolm Lowry), ao
ponto desta impressionar, de um modo incisivo, a imagem que, do exterior, se
faz daquela. Por outro lado, é inegável que a força desta realidade delineou também
vigorosamente os campos temáticos e, quase de certeza, as próprias estruturas
formais da literatura mexicana. Ora, se se tiver em consideração que esta, desde
sempre, teve um enorme ascendente no quadro das literaturas latino-americanas (recorde-se
os casos conhecidos de Rulfo, Fuentes ou Paz), pode perceber-se
como a partir da representação simbólica da realidade mexicana se
enformou “parâmetros narrativos e poéticos” que têm uma irradiação
significativa em toda a América Latina.
Mas o mais interessante em As
Mortas é as suas características estilísticas, já que o narrador
tem a mera função de efectuar o levantamento dos acontecimentos, aproveitando-se
de depoimentos de testemunhas, provas de tribunal, etc. Esta tonalidade de
relatório, concisa e objectiva, serve na perfeição, através de uma descrição
ironicamente ingénua, para realçar a própria crueza dos factos e a rudeza destas
personagens, habituadas a saber que é o medo do sofrimento que está na base das
relações de poder que estruturam uma sociabilidade
fechada.
Publicado no Expresso em 1986.
Título: As
Mortas
Autor: Jorge
Ibargüengoitia
Tradutor: António Sabler
Editor: Ed.
Caminho
Ano: 1986
184 págs, esg.
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