quinta-feira, 7 de julho de 2016

SEVERO SARDUY

 
 
 
 
O TRAVESTISMO DA REALIDADE
 
Durante a ditadura de Fulgêncio Batista, fortemente sustentada pelos Estados Unidos, Cuba viveu um período de grande efervescência intelectual. Como aconteceu em tantas outras regiões e países, o descontentamento com a situação socio-económica e com a exploração desenfreada norte-americana impeliu os intelectuais cubanos para um intenso debate ideológico, com inevitáveis reflexos políticos e estéticos. A revolução castrista - que, na sua fase inicial, foi bastante apoiada pelas massas populares e pelos intelectuais - permitiu o pleno florescimento deste viveiro, com manifestações significativas nos campos da música, das artes plásticas e da literatura. Foi nesta altura que, no domínio da narrativa, se afirmaram, com as suas obras-mestras, autores que já antes tinham publicado, como é o caso de Virgilio Piñera, Alejo Carpentier e José Lezama Lima, marcando de um modo decisivo a posterior produção literária cubana, e desabrochou uma nova geração de ficcionistas em que se destacaram autores como Guillermo Cabrera Infante, Reinaldo Arenas e Severo Sarduy.  
 
Severo Sarduy nasce em 1937, em Camarguey. É nesta cidade que faz os seus primeiros estudos e, ainda muito novo, publica os primeiros poemas. Em 1956, desloca-se para Havana, para estudar Medicina. Porém, o ditador Fulgêncio Batista, em consequência da contestação estudantil, resolve encerrar a Universidade, e Severo Sarduy aproveita esta circunstância para se dedicar à actividade literária com mais intensidade, colaborando em diversas revistas, e ao estudo da arte cubana e latino-americana.
 
Com o triunfo da revolução, Severo Sarduy participa activamente na vida intelectual, colaborando nos jornais “Diario Libre” e “Lunes de Revolucion” e publicando os seus primeiros contos. Em 1960, ganha uma bolsa para vir estudar História de Arte para a Europa, fixando-se de início em Madrid. Passados poucos meses, no entanto, vai para Paris, para estudar na Escola do Louvre e na Sorbonne. Integra-se rapidamente na vida intelectual francesa, estabelecendo relações de amizade com François Wahl, Roland Barthes, Jacques Lacan e Philippe Sollers. Em 1965, participa como colaborador na prestigiada revista “Tel Quel”. Ao mesmo tempo, desenvolve uma ampla colaboração em alguns dos jornais e revistas literárias latino-americanas (“Mundo Nuevo”, “Plural”, “Sur”, etc.), e integra, como conselheiro editorial, a equipa de Editions du Seuil, contribuindo, dessa forma, para o “boom” da literatura latino-americana em França (segundo consta, foi por sua indicação que se publicou Cem Anos de Solidão de Gabriel García Marquez naquela editora).
 
Em 1963, em Barcelona, é editado a sua primeira narrativa, Gestos, onde já se tornavam visíveis alguns aspectos característicos da sua obra: uma forte componente experimental, um enorme interesse por ambiências marginais (para o que não deve ser estranho a sua mestiçagem chino-afro-ameríndia) e um acentuado fascínio pelo “kitsch”. É, contudo, com a sua segunda obra narrativa, De donde son los cantantes, que obtem reconhecimento como narrador nos meios intelectuais latino-americano e francês (no próprio ano da sua edição em castelhano, 1967, é traduzida para francês e editada). De seguida, Severo Sarduy orienta-se para a poesia, publicando três livros. Mas é com a publicação da sua terceira narrativa, Cobra (1972), agora editada no nosso país, e com o ensaio intitulado Barroco (1974), que ficam definidos com rigor os parâmetros estéticos e teóricos da obra de Severo Sarduy. As suas obras posteriores (onde se destaca La simulacion, Colibri e Cocuyo) vão meramente aprofundar e desenvolver os parâmetros já definidos. Em 1993, morre em Paris com a peste do nosso tempo, a SIDA.
 
Pode considerar-se que um dos objectivos fundamentais da obra de Severo Sarduy é a tentativa de reabilitação na contemporâneidade dos princípios estéticos do barroco, respeitando uma tradição que vem de Quevedo e Gongora até aos seus conterrâneos (e predecessores) Carpentier e Lezama Lima. Mas, ao mesmo tempo, o autor, como expõe na sua obra Barroco, procura amplificar o sentido desta corrente estética, redefinindo-a como uma cosmologia “artística”, isto é, um simulacro do cosmos. Não admira, por isso, que nas suas obras narrativas não exista uma intenção de se aproximar a qualquer real, mas a sua ocultação por um outro que pretende ser a transfiguração do anterior (saliente-se que é esta postura que origina o seu fascínio erótico, bem espelhado em toda a sua obra, pela transsexualidade, as “drag queens” e o travestismo): a narrativa torna-se, assim, uma “mecânica”, controlada pelo homem, que “mascara” e, dessa forma, ao mesmo tempo desvenda, recria e interpreta a realidade. Neste sentido, Severo Sarduy preocupa-se em instaurar uma nova unicidade interpretativa, o que determina, segundo ele, a desconstrução da presente retórica discursiva e, em paralelo, a fusão de todas as tradições doutrinais e/ou cosmológicas. Por fim, as suas personagens afirmam-se sempre como arquétipos, mitos, encarnações de valores e doutrinas, duplos metamorfoseados, na aparência etéreos e intemporais, de quaisquer eventuais personagens que, retiradas do quotidiano, não passam de simples larvas das que a produção narrativa revela.
 
Publicado como introdução à edição portuguesa de Cobra em 2004.
 
 
Título: Cobra
Autor: Severo Sarduy
Tradutores: Margarida Amado e Pedro Santa María de Abreu
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 2004
240 págs., 15,00 €
 

 

 


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