sábado, 10 de março de 2012

MARTIN AMIS




DESLIGUE-SE A FELICIDADE DO MUNDO



Gostava de começar esta recensão por uma história pessoal. Há alguns anos, convidado pelo Estado americano, viajei pelos EUA e, por entre os diversos lugares que percorri, fui parar à Universidade Estadual do Mississippi, onde se realizava um congresso de escritores. No meio de muita gente que lá apareceu (recordo com alguma simpatia as conversas com Richard Ford e Charles Simic), havia, como “prato principal”, um colóquio com John Grisham e Stephen King (dois “monstros” de vendas de livros em todo o mundo), moderado por um bom escritor sulista chamado Barry Hannah. Como só os americanos sabem fazer, nesta sessão tudo teve mais a ver com o “show-bizz” do que com a literatura: recordo a chegada de Stephen King de helicóptero ao “campus” da Universidade e dos agradecimentos de Barry Hannah pela sua benevolência e compreensão, informando o público de que o “cachet” deste autor, por perder um dia de trabalho, seria incomportável para “qualquer” universidade americana. Mas esta história vem-me à memória por causa de uma questão que John Grisham colocou a Stephen King, ao interrogá-lo sobre como ele conseguia escrever cerca de dois livros por ano, alcançando sempre um enorme sucesso comercial, e este lhe respondeu, fazendo músculo (é conhecido como Stephen King gosta de andar sempre de camisolas de alças ou de “t-shirts”), que só consegue esses resultados com uma excelente preparação física e um regular treino no seu ginásio de musculação.

Recordo esta história porque creio que Martin Amis não desdenharia responder com uma “boutade” semelhante perante a cena literária britânica. Não pretendo comparar estes dois autores (Martin Amis tem ambições literárias que Stephen King só tem “reconditamente”), mas a produção de Martin Amis (treze títulos em vinte anos e já dois anunciados para o próximo ano) e o autêntico vendaval, que tem originado a sua presença no meio literário inglês, fazem sobressair uma componente de energia “física” na sua actividade. É sabido que a personalidade deste escritor provoca aplausos e fortíssimas irascibilidades e que, por isso mesmo, a sua obra terá sempre um estatuto particular no “establishement” literário (não é por acaso que só um dos seus livros recebeu o Somerset Maugham Award e que alguns títulos seus estiveram na “short list” do Booker Prize sem nunca o ganharem).

Mas deve reconhecer-se que romances como, por exemplo, Sucess, Money ou The Information revelam que este autor é um virulento cronista dos tempos actuais, com inegável acutilância crítica, e um admirável estilista: a coloquialidade, as suas frases curtas, quase sincopadas, o permanente jogo de aliterações - algumas delas de uma ironia verdadeiramente nabokoviana -, a originalidade da sua adjectivação, a forma como as suas narrativas progridem num sistema complexo de elipses demonstraram à exaustão que Martin Amis é um excelente manuseador da língua inglesa. Além disso, a sua visão quixotescamente anti-romântica (?) da literatura instituiu um modo de estar nela que, quer se goste ou não, transformou imenso a forma de a entender como fenómeno social: de facto, Martin Amis foi um dos primeiros autores a compreender que a eficácia de uma obra (em termos estritos da sua “visibilidade” perante o público) passa por uma inteligente utilização dos circuitos mediáticos e que a literatura não se pode alhear - como tudo na vida - de que está inserida num universo de dinheiro e de negócio e que, por isso mesmo, só tem vantagens em o assumir, plena e frontalmente, sem nunca abandonar critérios próprios de exigência ética e estética. E, repito, quer se goste ou não, esta forma de entender a literatura como um “meio artístico de comunicação” criticamente integrado na actual sociedade já deu origem a um número infindável de epígonos, muitos deles confessos: o futuro de certa literatura contemporânea “já passou” pela obra de Martin Amis.

No contexto da sua obra, o último romance deste autor, traduzido agora com o título de O Comboio da Noite, parece um “momento de pausa” de um corredor de fundo para tomar fôlego. Enquanto alguns dos anteriores romances deste autor são amplos frescos por onde perpassa uma feroz crítica, carregada de um sarcasmo implacável, a certos valores (?) destrutivamente dominantes da nossa civilização (as obsessões da permanente juventude, da energia sexual inquebrantável, do sucesso e da riqueza a todo o custo, etc.), conseguindo virar do avesso a euforia de sociedades de abundância, O Comboio da Noite, pelo contrário, desilude muito, por centrar-se estritamente na problemática do suicídio e por parecer, perante as obras anteriores, um singelo “exercício” literário em louvor do romance negro e, em particular, de um autor americano, que Martin Amis muito aprecia, chamado Elmore Leonard.

Este romance, mais uma vez situado nos Estados Unidos, narra a investigação, feita por uma detective, de um suicídio, aparentemente realizado com uma imensa raiva auto-destrutiva, de uma mulher jovem, bela, inteligente, perfeitamente equilibrada em termos profissionais e afectivos, e que, por conseguinte, nada parece levar a semelhante acto. Por isso, o pai dela, Chefe do Departamento de Investigação Criminal, não admite esta evidência. E resolve abrir uma investigação, nomeando, para ela, a detective Mike Hoolihan, uma mulher que é o absoluto contraponto da suicida: alcoólica, vítima de abuso sexual na infância, incapaz de ter uma relação afectiva aceitável e de achar minimamente suportável o mundo que a rodeia.

A partir daqui, Martin Amis começa o seu jogo de manipulação do leitor, levando-o, através de um labirinto de caminhos sem saída, à mais óbvia e inaceitável certeza: a de que a perfeição não foi feita para existir neste universo e que essa ambição levará a uma desilusão autofágica; e que, pelo contrário, a sobrevivência só será possível a quem assumir uma resistência “impura”, contaminada, - a quem, em consciência, saiba que assassinou a possibilidade da felicidade no mundo. E torna-se, então, evidente, mesmo neste simples exercício literário, um dos sinais maiores deste autor: um radical niilismo de quem há muito encara a presente civilização como uma luxuosa e espectacular “limousine” com o motor gripado e sem arranjo possível.

Por fim, algumas considerações sobre a tradução. Creio que a tradutora - uma profissional que já deu provas da elevada qualidade do seu trabalho - optou de uma forma errónea perante esta obra de Martin Amis. É conhecida a enorme dificuldade que levantam as traduções deste autor, principalmente porque a sua coloquialidade as transforma numa perigosa armadilha. Creio que existiu aqui uma opção por uma tradução muito próxima do literal, o que deu origem a frases em português de leitura sinceramente obscura para não dizer ilegível. Os casos são tão abundantes que nem vale a pena estar aqui a fatigar o leitor com exemplificações. Além disso, O Comboio da Noite é uma obra tão “embebida” no particularíssimo quotidiano americano que exigia algumas notas explicativas em inúmeros trechos, uma vez que estas, no presente caso, não tornariam “pesada” a leitura e, pelo contrário, contribuiriam para uma mais fácil fruição do romance.


Publicado no Público em 1998


Título: O Comboio da Noite
Autor: Martin Amis
Tradução: Telma Costa
Editor: Editorial Teorema
Ano: 1998
173 págs., € 10,60







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