quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

PETER SCHNEIDER





HERANÇAS PATERNAS


Uma das facetas mais interessantes da literatura alemã do pós-guerra é que ela produziu um já impressionante conjunto de obras romanescas e ensaísticas relacionadas com o tema da culpa, com a caracterização deste sentimento, a sua pertinência existencial e social, a sua motivação psicológica e política, etc., ao ponto de ter sido, provavelmente, um dos mais importantes contributos, no seu todo, para uma reformulação, no nosso tempo, dos valores morais.

É sabido que este tema tem origem na necessidade, sentida em particular pelos escritores do Grupo 47, em responsabilizar (e, de certo modo, culpabilizar), individual e colectivamente, o povo alemão pelos crimes de guerra e as tentativas de genocídio perpetrados pelo regime nazi, como única forma de extirpar as razões culturais que lhe deram origem e, assim, eliminar qualquer eventual “renazificação”.

Papá, a novela de Peter Schneider agora traduzida, continua esta mesma problemática, formulada agora por quem, em termos geracionais, não esteve envolvido com os acontecimentos provocados pelo referido regime. A sua publicação originou uma acesa polémica na Alemanha e deu ainda mais realce ao nome do autor que, vindo da militância da extrema-esquerda, iniciou a edição da sua obra romanesca nos finais da década de setenta e de imediato granjeou o prestígio de ser considerado um dos escritores mais importantes da geração posterior à de Peter Handke.

A trama desta novela baseia-se narração da visita de um jovem advogado ao seu pai que, sendo um torcionário nazi dos campos de concentração escondido no Brasil, mal conheceu e só adulto soube que estava vivo. Tendo sofrido, durante a infância e a adolescência, o estigma do seu patronímico, ao ponto de sentir que a sua relação com os outros foi radicalmente alterada por esta permanente sombra, e de todo convicto da culpabilidade do seu pai, ele visita-o, não só para conhecer o tipo de homem que o marcou de forma tão trágica, mas para o obrigar a assumir, perante a actual sociedade, a responsabilidade dos actos que cometeu.

Mas, perante o pai, uma questão de fundo lhe surge de forma brutal: como conseguimos nós próprios assumir, ao nível do privado, um crime que socialmente consideramos hediondo? Ou por outras palavras: como somos capazes de acusar o pai?

E não se julgue que a perturbação que motiva a pergunta seja resultante de qualquer intensidade afectiva. Nesse aspecto, Papá coloca a questão na dimensão correcta: a personagem principal mal conheceu o pai “antes”. A perturbação que deu origem àquela pergunta é motivada pela “proximidade” familiar, pela natural tendência em sobrepôr a história privada à História social, levando à diluição dos juízos que, no registo desta, seriam objectivos e concludentes.

É certo que são duas as acusações que a personagem principal faz ao pai: uma, de natureza pessoal, resultante da maldição que a acção do pai lançou sobre o seu nome, e outra, de natureza social, resultante da sua assinalada intervenção num repugnante genocídio. Mas qual destas duas acusações o obstina em condenar o pai?

O problema coloca-se-lhe de um modo objectivo quando a personagem principal, tentando resolver um caso de roubo de que fora vítima, percebe que a polícia decide, para o pacificar, arranjar um bode expiatório numa jovem que, ainda por cima, o tinha chamado atenção na rua: não só o “seu” culpado deixara de ser incorpóreo (tal como o seu pai), como a intervenção social deformara o sentido da sua acusação (tal como iria acontecer provavelmente com aquele). É enquanto busca, de modo desesperado, anular o resultado que a sua obstinação em acusar tinha provocado e perante a degradação social que a cidade de Belém (cenário de ocultação do pai-carrasco) patenteia por todo o lado, que à personagem principal se coloca a questão final: até que ponto temos legitimidade em exigir que alguém assuma culpas perante “esta” sociedade?

Papá fica por aqui nas questões que coloca de forma explícita. Mas deixa a pairar outras vertiginosamente mais perigosas. O leitor pressente-as, busca-as, mas a obra de Peter Schneider, ao confinar-se às dificuldades de integração no domínio privado de princípios gerais, deixa-lhe apenas uma nebulosa de interrogações sem um sentido previsível. De facto, esta novela torna-se polémica, não tanto pela problemática que coloca, mas pela que indicia. Esperemos, por isso, que se clarifiquem nas próximas obras do autor os percursos que aqui se abrem…



Publicado no Expresso em 1988.



Título: Papá
Autor: Peter Schneider
Tradutor: Artur Lopes Cardoso
Editor: Edições 70
Ano: 1988
86 págs., esg.


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