quarta-feira, 19 de junho de 2013

NÉLIDA PIÑON




O MAGNO REGISTO DA VIDA



A leitura de A República dos Sonhos de Nélida Piñon leva-nos a reflectir inevitavelmente sobre as relações culturais luso-brasileiras e a constatar mais uma vez um facto, já bem conhecido, mas que continua, não poucas vezes, a escamotear-se: é que essas relações são demasiado ténues, muito em especial, se tiver em consideração que estão inseridas num universo linguístico comum. De facto, apesar do esforço meritório de algumas personalidades e de um empenhado intercâmbio académico, o conhecimento que existe no nosso país sobre a vida cultural brasileira é mais reduzido do que aquele que existe sobre outros países com muito menores afinidades linguísticas. E tudo leva a crer que a situação deve ser bastante similar no Brasil em relação à realidade cultural portuguesa. Não se tenha dúvidas que esta situação é em grande parte resultante de não existir uma empenhada política de aproximação cultural, coerente e continuada, por parte dos respectivos Estados. E, sem ela, pouco sentido tem a existência em letra de forma de uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa ou um pomposamente apregoado “maior galardão literário em língua portuguesa”, o Prémio Camões, enquanto ele não servir - como já referiu Eduardo Lourenço num artigo bem conhecido e pertinente - de chave-de-abóbada de um efectivo intercâmbio literário entre os países de expressão portuguesa.

Bem comprovativo de tudo isto, é o facto deste romance de Nélida Piñon ter levado treze anos a atravessar o Atlântico. É certo que a sua envergadura (734 páginas de, como se diz em gíria popular, “letra miudinha”) terá contribuído para isto. Mas, por estas mesmas razões, é de toda a justiça salientar este “invulgar acontecimento editorial” e o manifesto arrojo da Ed. Presença em publicar uma obra que, e com um sincero lamento o dizemos, nada faz prever que venha a ser coroada de um legítimo êxito comercial. Tanto mais lamentável, quanto A República dos Sonhos é, numa classificação intencionalmente simplista, um dos maiores romances de sempre em língua portuguesa sobre as migrações e, por isso mesmo, uma referência obrigatória para quem quiser efectuar um adequado balanço da produção ficcional concebida na nossa língua nos últimos vinte anos.

Tudo leva a crer que a própria Nélida Piñon seja muito pouco conhecida em Portugal. Porém, esta autora arrancou com a sua obra de ficcionista há mais de trinta anos e tem já mais de uma dezena de títulos publicados. Hoje, com o estatuto de autora consagrada e influente, é presidente da Academia Brasileira de Letras, instituição que mantem um dinamismo significativo e um prestígio muito amplo.

A República dos Sonhos é uma vasta saga de uma família de emigrantes galegos que, no princípio do século, se desloca para o Brasil (para a América, como, de uma forma quase encantatória, nomeiam o sonho de aventura e riqueza que para eles representa aquele país). O romance desenrola-se a partir do momento em que Eulália, a esposa de Madruga, o emigrante bem-sucedido que construiu um império económico, “decidiu” que era altura de morrer e durante a vigília de uma semana que filhos e netos vão fazendo até à sua morte. Centrada neste núcleo de acção, a obra, através de uma estrutura complexa, vai passando em revista os acontecimentos, tanto na Galiza como no Brasil, que constituem a memória de várias gerações daquela família e que, a seu modo, orientam e fundamentam o “sonho” que movimenta cada um dos seus membros.

O sentido mais óbvio do título deste romance é o da identificação desta “república” com o Brasil; mas é importante salientar que, para Nélida Piñon, a expressão “república dos sonhos” decorre de uma cosmovisão em que o indivíduo é concebido numa dupla dimensão: uma mais superficial, definida pelo seu percurso existencial concreto, e uma outra, mais profunda, constituída pelo seu “desejo de futuro” (“o sonho”), representação crucial para a acção do indivíduo no seu espaço de sociabilidade. Ou, por outras palavras, os indivíduos são fundamentalmente o “sonho” que de si próprios fazem e é nesse registo que entram em conflito ou em confluência no mundo dos outros.

Por isso, e sem maniqueísmo excessivo - pode dizer-se que, em A República dos Sonhos, até as figuras mais secundárias são construídas com uma grande espessura -, todas as personagens têm o seu contraponto, com desejos e visões do mundo antagónicos, dando ao romance uma dimensão sinfónica, que ainda é reforçada pela existência de um número significativo de narradores que vão perspectivando os mesmos acontecimentos individuais e políticos de forma diversa e confrontante.

Como foi referido, as personagens principais deste romance reflectem de forma exaustiva o duplo estatuto de emigrante/imigrante, balançando-se, com amor e ódio, entre o “ajuste de contas” com a cultura abandonada (ou que, de certo modo, repudiou o emigrante), de molde a exorcizar esse passado e a deixá-las libertas para melhor mergulharem na nova cultura, e a estigmatização no próprio corpo do seu património, para que permaneça como sinal distintivo que permita uma reavaliação constante e profunda da cultura onde estão inseridas. O resultado desta reflexão é a transformação de A República dos Sonhos num admirável fresco sobre os destinos da Espanha e do Brasil durante este século, onde, de forma constante, se entrecruzam uma análise subjectiva, diríamos até “intimista”, e uma outra de maior explicitação ideológica.

Este romance faz também transparecer uma complexa reflexão sobre o estatuto da arte narrativa. Antes do mais, porque ela é encarada como a mais perfeita encarnação da “memória” de um povo, sendo este aqui entendido não de uma forma abstracta, mas como um colectivo de entidades distintas com desejos e sonhos diversos e muitas vezes antagónicos. Neste contexto, é bem estimulante a ponderação efectuada sobre o papel das narrativas orais e das narrativas escritas e do seu respectivo apetrechamento para resistir à função obliterante do futuro. Ao mesmo tempo, e partindo deste estatuto de “memória” do colectivo, a arte narrativa é assumida como o único e frágil meio que a História deu ao homem para dar sentido ao perecível das existências individuais.

Compreende-se assim porque é que a dimensão física deste romance nem é um acto de pura gratuitidade nem é resultante de uma incapacidade do autor em controlar o “material” narrativo em parâmetros aceitáveis. Desde o início - e retirando esse “ensinamento” da literatura oral - que se assume que, para o leitor ter direito a partilhar a “memória” narrada, deve, antes do mais, entregar-se a uma disponibilidade e a uma curiosidade que sejam equiparáveis ao esforço do narrador. A dimensão física do que é narrado serve, portanto, para alicerçar a indispensável cumplicidade entre o leitor e essa “memória”.

É quase impossível que uma obra com a dimensão de A República dos Sonhos mantenha um constante registo de intensidade e fulgor. De qualquer modo, talvez a componente mais moderna e inesperada deste romance seja a sua componente estilística. De facto, o estilo é encarado pela autora como o bisturi que fende a casca de estereótipos e de representações acomodadas à realidade que cada um faz de si próprio e que escamoteiam as intensas pulsões individuais. Desse esforço estilístico de dissecação, sobressai um resultado que não poucas vezes assume uma visão brutal dos homens e das coisas, mas que é, ao mesmo tempo, de uma intensidade lírica quase crua, o que dá a muitos trechos deste romance uma beleza muito particular e sem muitos paralelos dentro da literatura concebida na nossa língua.


Publicado no Público em 1997.


Título: A República dos Sonhos
Autor: Nélida Piñon
Editor: Editorial Presença
Ano: 1997
734 págs., € 23,92




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