segunda-feira, 10 de junho de 2013

PAULE CONSTANT



O ANIMAL INVISÍVEL DO CORPO


Mal se inicia a leitura de Confidência Por Confidência, a obra da escritora francesa Paule Constant que ganhou o Prémio Goncourt do ano passado, percebe-se que esta segue uma das estratégias narrativas mais comuns (e talvez das mais convencionais) do romance de origem feminina: a de juntar algumas mulheres num espaço fechado (em geral, uma casa, longe da multidão, isto é, dos homens), onde reflectem, numa total disponibilidade emotiva, a sua experiência amorosa e social, efectuando uma espécie de juízo final sobre os dias que lhe deram como sorte inevitável.

A ironia do último parêntese não é gratuita. É que, de facto, esta estratégia narrativa tem sempre duas constantes: a primeira, é que os homens são sempre uma espécie de “figuras fantasmagóricas” obsessivas, continuamente a entrar e a sair por todas as frestas da casa, mal permanecendo, mas deixando sempre, de diversas formas, o estigma da insatisfação afectiva às “verdadeiras” protagonistas do romance; a segunda, é que os diálogos e as encadeantes “falas” destas personagens têm sempre um último destinatário “exterior” à própria casa e funcionam como uma espécie de imprecação contra a “cidade” que as “empurrou” para esse universo interior, esse gineceu que acusam de milenarmente lhes ser imposto.

Talvez, por isso, não seja ocasional que dois romances, agora traduzidos e editados no nosso país, de autoras de espaços geográficos tão distintos como o Chile e a França, sejam exemplares desta estratégia narrativa: Tão Amigas Que Nós Somos de Marcela Serrano e o já referido Confidência Por Confidência de Paule Constant. E o confronto entre estas duas obras permite-nos compreender o grau de originalidade da obra da autora francesa: é que, enquanto o primeiro segue com rigor o modelo narrativo acima exposto, o segundo orienta as referidas falas encadeantes não para um “exterior”, como se fosse um “inimigo” distinto e abstracto, mas para uma dilacerante análise das próprias personagens, procurando reflectir o que nelas se encaminhou para um destino de desencanto e amargura.

Paule Constant, a autora de Confidência Por Confidência, iniciou a sua carreira literária na década de oitenta e tem redigido uma obra que vai obtendo o reconhecimento crítico e algum sucesso de vendas, em particular com os romances White Spirit e La Fille du Gobernator. Em resumo, uma autora tipicamente talhada para ganhar o Prémio Goncourt; talvez, por isso, foi, sem grandes polémicas e de forma um pouco previsível, que o conquistou na sua penúltima edição (o deste ano foi entregue, há poucos dias, ao romance Je m’en vais de Jean Echenoz) com a obra agora traduzida.

O palco dramático do romance de Paule Constant situa-se num “campus” de uma universidade do Arkansas, onde se realiza um congresso de “Estudos de Mulheres”, e reune quatro mulheres de meia-idade: duas francesas (uma antiga artista de cinema e uma romancista), uma argelina naturalizada americana e uma negra de origem também americana (ambas professoras universitárias). Todas têm em comum viverem de forma mais ou menos só, depois de passarem por experiências amorosas, ou intensas ou numerosas, e terem obtido alguma consagração pública com a sua vida profissional. E, já neste aspecto, o romance procura, pelo contraste, evidenciar um efeito que parece ser, de facto, menos conseguido: o confronto entre as peculiaridades de um quotidiano de mulheres bem realizadas em termos profissionais (possuindo “secretários” - que não só são seus interlocutores intelectuais como lhes resolvem os problemas “práticos” da vida -, não tendo horários, trabalhando em matérias que lhes dão prazer, etc.) e a permanência de dificuldades afectivas e existenciais quase universais a todas as outras mulheres.

Contudo, talvez esta proximidade a quotidianos, que a autora bem conhece, lhe tenha facilitado transmitir maior veracidade às suas personagens. Estruturado em capítulos que alternam de personagem para personagem, Confidência Por Confidência, com um trabalho oficinal esmerado, progride em vórtice, aumentando a intensidade e a densidade das figuras que retrata. Todas acentuadamente traumatizadas pela entidade masculina (e deve entender-se este termo na sua concepção mais ampla, englobando uma visão do poder e da sedução que privilegia a imagem em relação à palavra, um modelo da família patriarcal, mas também um certo conceito da organização social e política, assente na colonização, na fronteira e na sedentarização), condicionadas por um Outro que as asfixia (porque não responde à sua necessidade de complementarização e de construção do Andrógino), estas personagens ficam confinadas, como as feiticeiras de Macbeth, a remexer no caldeirão das suas existências, procurando, no borbulhar da fervura, um vestígio que lhes permita perceber quando apareceu no seu íntimo a ferida que lhes impossibilita a aproximação ao Outro que desejam. E em que momento elas resolveram limitar-se, em substituição desse desejo insatisfeito, a conquistar a sua parte do “espaço” que o Outro desde sempre ocupou.

Utilizando um jogo psicanalítico, que parece fácil, mas que se revela operacional no romance, Paule Constant delineia as suas figuras femininas em redor de um objecto ou de um animal que, de certo modo, corporiza o seu mal-estar emocional (uma panela de “cous-cous”, uma caixa de sapatos, um macaco ou um rato). No fundo, é como se as personagens rodeassem com a matéria nacarada da sua vida profissional este mal-estar, sabendo, no entanto, que no interior desse invólucro continua um corpo que, de súbito e de forma regular, continua a ascender à consciência delas, perturbando-as e sublinhando-lhes, a traço grosso, a “deformante incapacidade” das suas existências. Daí que a cena mais lancinante do romance apareça já no final, quando uma das personagens resolve matar com as mãos um rato, num ritual que mais parece uma forma simbólica de provocar nela própria a amnésia do seu passado.

Confidência Por Confidência é uma obra densa, amargurada, e servida por um estilo barroco, com uma significativa diversidade lexical e, por conseguinte, árduo de tradução. Não admira, por isso, que o louvável trabalho da tradutora - uma pessoa já com provas reconhecidas de competência literária - revele aqui e além algumas soluções mais contestáveis, dadas as dificuldades de se esquivar às armadilhas de um estilo, por vezes irregular, mas que ambiciona expressar os complexos matizes de personalidades que se interrogam até à dilaceração.

Publicado no Público em 1999.



Título: Confidência Por Confidência
Autor: Paule Constant
Tradutor: Helena Barbas
Editor: Editorial Notícias
Ano: 1999
206 págs., esg.





Sem comentários: