quarta-feira, 26 de junho de 2013

WILLIAM SAROYAN




UMA GENEROSIDADE FIASCADA



Uma das tónicas mais constantes da literatura americana é uma “generosidade” - para melhor a definir, podemos chamar-lhe “whitmaniana” - que se reflecte num apelo à existência de uma estreita consonância com a Natureza e com os problemas dos homens (entendendo estes como um elemento integrante, mas, muitas vezes, mal ajustado, da paisagem) como matriz primordial da criação literária.

Um decisivo contributo para esta tónica foi dado pela lufada de vitalidade (que, como hoje é consensualmente aceite, era muito mais aparente do que real) da obra de Hemingway. E o impacto foi tal que muitos outros autores, aprendendo melhor ou pior a lição, lhe seguiram a esteira.

Um deles, que sempre reconheceu o que devia a Hemingway, foi William Saroyan, um ficcionista e dramaturgo californiano, de origem arménia, que, começando a publicar na década de trinta, obteve logo um tremendo sucesso, ao ponto de ser encarado como um dos maiores valores de sempre da literatura americana.

Actualmente, só se pode compreender o êxito desta obra, caracterizada pela já referida generosidade e um empolgado humanismo, pelo contexto de depressão económica em que apareceu. No fundo, ela vinha transmitir uma enorme convicção nas potencialidades inerentes a qualquer homem, mesmo o mais humilde, o que caia bem em leitores asfixiados por problemas económicos e sociais.

É também esse humanismo quase adolescêntico que provavelmente justifica o sucesso da obra de William Saroyan na Europa do pós-guerra - numa altura em que quase tudo o que era americano era considerado heroico e positivo - e a extraordinária receptividade que obteve entre os escritores do nosso país. O prefácio de O Homem Com O Coração Nas Terras Altas, uma colectânea de “short-stories” dos anos trinta agora editada entre nós, da autoria do escritor Baptista-Bastos, é ainda bem sintomático, pelo seu tom laudatório, da influência que este autor exerceu sobre toda uma geração.

Porém, é nítida a irregularidade de uma obra que inúmeras vezes foi escrita, como o próprio autor confessou, sob uma incontrolada premência e, por conseguinte, sem muitas preocupações com os resultados artísticos. Os seus romances são, neste momento, quase ilegíveis; e a parte da obra de William Saroyan que ainda é de destacar - a que se adequava melhor a sua peculiar personalidade - é a composta pelas “short-stories” e pelos textos dramáticos.

Para o melhor e para o pior, as histórias de O Homem Com O Coração Nas Terras Altas revelam todas estas características. Nelas aparece todo o tipo de personagens bem comuns à restante obra do autor: empregados de escritório sonhando com outras vidas, bêbados desadaptados e carentes de afecto, jovens mães solteiras, adolescentes impacientes por serem adultos, proféticos pequenos comerciantes, emigrantes que trabalham sazonalmente de terra em terra, donas de casa frustradas, padres e prostitutas, boxeurs mal-amados, escritores de obra adiada, etc., gente banal com histórias banais que William Saroyan registava em frenesim, procurando, e nem sempre conseguindo, conceder-lhes uma significação que ultrapassasse as suas limitadas existências.

As personagens destas histórias, em geral, são representadas a viver um mal-estar resultante de dificuldades de comunicabilidade, preciosidade que todas anseiam, mas que uma civilização “materialista”, ao incutir espírito de competição e de desconfiança, frustra, obrigando-as a isolar-se em universos fechados (bem reveladoras desta compreensão um pouco ingénua da realidade são histórias como "Os Vivos e Os Mortos", "Os Nossos Amigos Ratos" e "A Declaração de Guerra").

Muitas vezes, estas histórias caem no pecado mortal de se perderem em pormenores insipientes ("Os Vivos e Os Mortos", "O Mensageiro") ou são tão simplistas que se tornam óbvias e monótonas ("Segredos em Alexandria", "A Mãe", "A Visão", etc.). No entanto, algumas, em particular as que conseguem libertar-se de um certo idealismo optimista e opaco, revelam-se, pela concisão e ligeireza estilística, emotivos retratos de situação (como é o caso de "O Irmão Mais Novo", de "Namorada Namorada Namorada" e "Irmãos e Irmãs"), justificando o papel que este autor teve na formação da sensibilidade “beat”. Ou ainda, talvez as mais interessantes, aquelas que conseguem levar até ao mais radical absurdo as situações de incomunicabilidade ("O Homem Com O Coração Nas Terras Altas" e "Alguma Vez Se Apaixonou Por Uma Anã"), aproximando-as das experiências dramáticas que, noutras paragens e algum tempo depois, vão aparecer pela pena de Samuel Beckett.


Publicado no Público em 1992.



Título: O Homem Com O Coração Nas Terras Altas
Autor: William Saroyan
Prefácio: Baptista-Bastos
Introdução: Herb Caen
Tradução: Ana Cristina Ferreira de Sousa
Editor: Bertrand Editora
Ano: 1992
205 págs., esg.





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