domingo, 27 de agosto de 2017

MILORAD PAVIC

 
 
 
A VIDA É UM SONHO
 
Quando o Dicionário Khazar começou a destacar-se nas feiras internacionais de edição e nos “tops” de vendas (note-se que o sucesso deste livro no Ocidente foi, em grande parte, resultado de uma acertada aposta promocional da editora francesa Belfond que comprou os seus direitos mundiais), tornou-se evidente que existia no grande público, pelo menos desde o assombroso êxito de O Nome da Rosa, um novo e distinto conjunto de motivações na leitura e aquisição de romances: as editoras confirmavam que o leitor se fascinava por contextos históricos distantes (daí o grande empenho, notório fora do nosso país, em publicar “romances históricos”) e, por isso mesmo, exóticos (cada vez mais é pela dimensão temporal - e não espacial - que o leitor-viajante encontra os cenários exóticos), se deleitava com o eruditismo que legitima e torna verosímeis aqueles contextos e se apaixonava pelas questões obscuras da Historia e da Cultura.
 
Mas à partida, mesmo assim, parecia pouco previsível que o Dicionário Khazar pudesse percorrer um destino muito rentável: o seu autor pertencia a uma literatura periférica, que, até em círculos especializados, era pouco conhecido (Milorad Pavic é um escritor servo-croata, apenas referenciado na Jugoslávia como especialista em Barroco e por ter publicado alguma ficção), e a forma de romance-enciclopédia parecia não se adequar aos enraizados hábitos de leitura linear. Talvez por isso se tenha tentado promover este livro a sombra do percurso de O Nome da Rosa - o que provocou em certos meios, como é natural, uma razoável irritação.
 
No entanto - e este é já um expressivo elogio aos méritos desta obra -, não há dúvida que o Dicionário Khazar tem suficientes qualidades para desarmar preconceituadas irritabilidades de quem se disponha a lê-lo: encontra-se nele uma formulação inovadora dos confrontos culturais que atravessaram o Centro e o Leste europeu, um lirismo que atinge inúmeras vezes dimensões encantatórias, uma proliferação de referências literárias e estilísticas bem demarcadas e estimulantemente encadeadas e, por fim, uma coerência e lógica internas que não só atravessam com rigor todo o tecido narrativo como fazem deste romance um objecto de facto singular.
 
Sobre este último aspecto, parece-nos de uma evidência fundamental que o centro e alibi narrativo deste romance-enciclopédia é um “vazio”. O que hoje se conhece do povo khazar - povo de origem turca que constituiu um império entre os séculos VII e X nas proximidades do Mar Cáspio - são as suas estratégias de resistência aos imperialismos culturais e políticos dos povos vizinhos, onde é costume realçar a sua famigerada conversão ao judaísmo. Quanto a sua especificidade cultural ou civilizacional, pouco ou nada se sabe, tanto mais que a informação existente sobre este povo veio de fontes documentais de origem judaica, islâmica, bizantina e chinesa.
 
É natural, por isso, que aquilo que se evidencia da ‘leitura” deste “vazio” seja a própria “leitura”. E a “imagem” que ela produz, em consequência de ter os referentes reais atenuados, assume a dimensão de um “sonho”. O povo khazar é, assim, uma entidade a haver, figura compósita de todas as “leituras” existentes e a existir, um “sonho” entrecruzado de todos os homens que procuram, ao longo da História, entender(-se).
 
Percebe-se, por conseguinte, por que é que, no quadro leitura/escrita, se sobrevaloriza expressamente no Dicionário Khazar o elemento leitura. Este facto é ainda mais saliente quando se tem em consideração que a palavra é entendida neste romance como uma forma de linguagem “impura”: a palavra tem componentes (fonéticos, morfológicos) de origem divina e de origem humana (e até mesmo satânica), devendo a leitura reter os primeiros e dispersar os outros num vento sem memória nem tempo. A leitura deverá ser a afirmação liberta do pensamento do leitor em relação ao pensamento escrito: Milorad Pavic, ao elaborar um dicionário, ao dividi-lo em três cadernos (a perspectiva cristã, islâmica e judaica da conversão do povo khazar e dos “rastos” que este, ao longo dos tempos, foi deixando), ao dar-lhe uma versão feminina e outra masculina (que, diga-se de passagem, só tem uma variante de pouco mais do que uma dezena de linhas numa das entradas), pretende apenas dispor a matéria narrativa de maneira a que os impulsos e a curiosidade do leitor possam ordená-la, de um modo livre, construindo assim uma “leitura” pessoal.
 
Por outro lado, o Dicionário Khazar, edição de Milorad Pavic, é a recriação de outra obra, o Lexicon Cosri, a enciclopédia mortífera e desaparecida do séc. XVII, que, por sua vez, é a tentativa de reinvenção do inexistente livro sagrado da seita dos “caçadores de sonhos” do povo khazar. Mais uma vez, escrever não passa do registo da “leitura” de um “vazio”. Ou, por outras palavras, do registo de um “sonho”. Porque “sonhar” é o elemento mais comum e atemporal entre todos os homens: não é por acaso que, no Dicionário Khazar, a vida de cada homem é o sonho de um outro (por isso é que, ao lado de entradas de personagens e factos históricos, descritos de forma mais ou menos documentai, aparecem figuras e situações “sonhadas” e, por conseguinte, tratadas, em termos estilísticos, de forma marcadamente onírica). Além disso, em cada sonho há uma parcela ínfima que a leitura deve reter, podendo, desde que combinada com outras de sonhos de outros homens, contribuir para a construção de um novo Adão, aquele que está deitado na continuidade dos tempos.
 
Está assim explicitado, de forma simbólica, o objectivo do Dicionário Khazar: partir de um “vazio” que só existe na leitura que dele se faz (o desaparecido povo khazar) para construir uma “ausência” que só poderá existir no acto de leitura (o futuro Adão). Entre um e o outro, o Dicionário Khazar aparece-nos como um corpo verbal: é através dele que o leitor se vê obrigado a navegar em águas transfiguradas (de repente, dar-se-á consigo num mar vertical), a encontrar-se com seres satânicos sem septo nasal e com princesas que vão reencarnando no ciclo dos tempos, a arriscar-se por faunas e floras tão estranhas como a dos sonhos mais delirantes que o leitor já esqueceu.
 
Contudo, recorde-se que deve seguir os conselhos de Milorad Pavic, quando acabar de ler este romance-enciclopédia: na primeira quarta-feira do mês seguinte ao de finalizar a sua leitura, sente-se com o seu exemplar num café do Rossio (ou da praça principal da sua povoação), espere que venha outro leitor ou leitora, compare as respectivas versões, repreendam o lexicógrafo pelo tempo que os obrigou a perder, e apressem-se a fazer o que deve ser feito e que só aos leitores diz respeito.
 
Publicado no Público em 1990.
 
 
Título: Dicionário Khazar
Autor: Milorad Pavic
Tradução (do francês): Herbert Daniel
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1990
262 págs., esg.
 
 



Sem comentários: