domingo, 3 de julho de 2016

TAHAR DJAOUT

 
FALA E MORRE
 
 
                                                 O silêncio é a morte
                                                 E tu, se falas, morres
                                                 Se te calas, morres
                                                 Então, fala e morre.
 
 
                                                 Tahar Djaout
 
Como é bem conhecido, os tempos, nestes últimos cinquenta anos, têm sido dolorosamente difíceis para a nação argelina. Depois de uma Guerra de Independência, que foi precursora e modelar para inúmeros países africanos que iniciaram a sua luta pela libertação colonial na década de sessenta, mas que também ficou tingida pela utilização sistemática da tortura e por sangrentos massacres - mais de meio milhão de mortos entre a população islâmica - que ensombraram a imagem de “farol” dos direitos humanos que a França sempre procurou assumir no mundo, a Argélia encontrou-se, à data da sua independência (1962), numa situação de total depauperação de meios técnicos e financeiros: de facto, a debandada da comunidade “pied-noir”, que durante mais de cem anos explorara a comunidade autóctone, deixou o país num estado exangue. Esta realidade obrigou a elite política argelina a proceder a uma estatização dos meios de produção que, na circunstância, revelou-se o modelo estratégico possível de desenvolvimento, mas que, por sua vez, originou um enorme mal-estar social, principalmente entre a população rural, e fomentou uma asfixiante burocracia e uma situação quase endémica de corrupção entre os seus quadros político-administrativos. Como reacção a este processo, assim como, é bem provável, a uma desadequada, em termos culturais, laicização de um Estado tutelar em excesso aos níveis económico e ideológico, a Argélia viu surgir, no seio da sua tradicional comunidade islâmica, manifestações de fundamentalismo religioso, muito activas e violentas, que deram origem a um ambiente de guerra civil, com novos massacres das populações indefesas, ficando - o que numa visão prospectiva pode ser muito grave - os seus autores quase sempre impunes, devido a um jogo de informação e contra-informação que, por  sistema, obscurece se estas acções foram perpetradas pelos movimentos integristas armados ou pelas forças militares e paramilitares pró-governamentais. Tudo isto tem encaminhado a Argélia, desde os inícios da década de noventa, para uma fase bem sombria e trágica da sua história de onde, de certo modo, ainda não conseguiu sair. 
 
Não admira, portanto, que a literatura argelina contemporânea tenha sido estigmatizada por esta realidade social, cultural e política tão violenta e dolorosa. Assim, durante a década de cinquenta - a fase mais intensa da luta de libertação -, o empenho dos romancistas argelinos de expressão francesa (esquece-se muitas vezes, de modo lamentável, que existe uma literatura argelina de expressão árabe), tais como Mouloud Feraoun, Mouloud Mammeri, Malek Haddad, Assia Djebar, mas, em particular, Mohammed Dib e Kateb Yacine (o seu romance Nedjma é considerado uma das “narrativas fundadoras” da literatura argelina), centrou-se, no essencial, na tentativa de demonstrar, perante o “humanismo francês”, os direitos óbvios da sua comunidade à independência política e económica, assim como em dissecar a forma como uma sociedade de raíz tradicional se estava a transformar.    
 
Nas décadas seguintes, após a independência, os problemas sociais e políticos da sociedade argelina mudaram de fisionomia. Face à desilusão de largos sectores sociais perante a incapacidade do poder político em satisfazer ancestrais necessidades e revindicações e, por outro lado, perante um discurso político que procurava fundamentar-se numa ortodoxia ideológica hegemónica e uniforme, recusando quaisquer variantes ou sinais de contestação, os escritores argelinos viram-se na obrigação de afirmar a sua independência através de rupturas de discurso. É este o sentido principal das narrativas de autores que surgiram nesta altura, tais como Rachid Boudjedra e Nabile Farès, e também de outros da anterior geração (relembro, por exemplo, os romances desta época de Mohammed Dib).
 
O agravamento das tensões sociais entre um poder político-administrativo corrupto e largos sectores sociais (uma classe média empobrecida, um proletariado suburbano sem perspectivas de emprego nem de possíveis melhorias de condição de vida, uma população rural desapossada das suas terras e sem trabalho) e o ressurgimento de manisfestações religiosas fundamentalistas, em confronto com todo o tipo de tentativas de abertura social ou de ocidentalização, deram fermento ao trabalho criador de escritores que iniciram a sua produção na década seguinte, em particular, Rachid Mimouni e Tahar Djaout.
 
Tahar Djaout nasceu em 1954, em Azeffoun, na Cabília marítima, e estudou matemáticas na Universidade de Argel e, mais tarde, ciências da informação e da comunicação na Universidade de Paris-II. Em 1976, iniciou-se na actividade jornalística, profissão que se tornou, durante a sua curta vida, uma dos meios fundamentais da sua intervenção na sociedade argelina: primeiro, integrou os quadros do jornal “Moudjahid”, passando depois para o hebdomadário “Algérie-Actualité”, onde foi, durante vários anos, editorialista e editor do sector cultural. Em Janeiro de 1993, com outros colegas do “Algérie-Actualité”, resolveu fundar um novo jornal, “Ruptures”, em que passou a ser chefe de redacção. Esta decisão foi-lhe fatal: em 26 de Maio desse mesmo ano, quando se preparava de manhã para ir trabalhar, um jovem aproximou-se da sua viatura e deu-lhe três tiros da cabeça. Tahar Djaout ficou ainda durante oito dias em coma profundo e morreu no hospital a 2 de Junho.
 
Para se compreender a importância deste brutal assassínio, saliento apenas três notas que são, ao mesmo tempo, bem reveladoras da encruzilhada social e política que a Argélia nos dias de hoje vive. A primeira, é que, face a efervescência social que o atentado sobre Tahar Djaout provocou, apareceu na televisão argelina, quatro dias depois, um jovem a “confessar” quem tinha sido os executantes do assassinato (cujos corpos apareceram mais tarde abatidos pelas forças da ordem) e a mando de quem (um chefe bem conhecido das GIA, as forças integristas argelinas); porém, em tribunal, o jovem declarou que a sua “confissão” tinha sido obtida sob tortura policial, ficando, portanto, sem efeito e, por consequência, o crime impune. A segunda, é que o jornal “Ruptures”, que Tahar Djaout ajudara a fundar, desapareceu das bancas em Agosto de 1993, devido a constantes ameaças de morte sobre outros membros da equipa jornalística – que os obrigou a refugiarem-se em Paris - e a conflitos constantes com a empresa gráfica onde o jornal era impresso (saliente-se que o jornal era rentável e tinha uma tiragem média de 70 000 exemplares). Por fim, a nota mais sinistra: o assassinato de Tahar Djaout foi o primeiro de várias dezenas de atentados a jornalistas na Argélia que têm ficado, na sua maior parte, como o seu, na total impunidade.
 
Ao nível literário, Tahar Djaout deixou-nos uma obra que integra cinco colectâneas de poesia, uma de contos e cinco romances. Foi em 1975 que publicou o seu primeiro livro de poesia, Solstice barbelé, e em 1981, o seu primeiro romance, L’Exproprié. De seguida, publica a sua colectâna de contos, Les Rets de l’oiseleur, e três romances: Les Chercheurs d’os (1984), L’Invention du desert (1987) e, por último, o romance que agora se publica, Os Vigilantes.
 
A obra narrativa de Tahar Djaout – como a maior parte dos autores argelinos aqui referidos – procura conciliar a análise das conjunturas socio-históricas argelinas com um trabalho de reflexão e de experimentação da matéria narrativa, conseguindo, dessa forma, conferir-lhe uma importância literária que supera uma postura estrita de denúncia ou de mero “documento histórico”. Por outro lado, - e esse foi, provavelmente, uma das razões que motivaram o atentado que o silenciou – o autor procura esquivar-se a uma visão maniqueísta da sociedade, tentando compreender como os bons e os maus estão em cada lado da trincheira e como todos os comportamentos, mesmo os mais repugnantes, ao mesmo tempo que tem de ser denunciados, devem ser inteligidos no contexto das motivações ancestrais que vão moldando (e desfigurando) o barro humano que lhes subjaz. Para atingir estes objectivos, o autor serve-se da ironia e de um certo folgo lírico que transfigura não só as situações absurdas e/ou trágicas narradas, mas, em particular, consegue dar uma densidade inusitada às personagens nelas envolvidas. 
 
Esta perspectiva narrativa possibilita que possam confluir nas obras romanescas de Tahar Djaout diversos níveis de leitura, podendo ser entendidas como parábolas que  reflectem uma determinada problemática conjuntural da Argélia, mas também podem ser “desterritorializadas” e integráveis em qualquer outro contexto sociocultural que propicie situações semelhantes.
 
Por fim, deve ser salientado que, na sua tentativa de compreender as motivações ancestrais que determinam o comportamento das suas personagens, Tahar Djaout rememora, com um olhar nostálgico, os universos “solares” da infância e de um passado rural, onde os reinos da morte eram simples, distintos e cristalinos, dando uma tonalidade “mediterrânica” muito peculiar aos seus romances.
 
Os Vigilantes é considerado, por unanimidade, em particular pela articulação harmónica dos seus elementos, um romance exemplar no conjunto da obra de Tahar Djaout e, por conseguinte, a melhor forma de introduzir o leitor de língua portuguesa na produção narrativa deste malogrado escritor.   
 
Publicado como introdução à edição portuguesa de Os Vigilantes em 2004.
 
Título: Os Vigilantes
Autor: Tahar Djaout
Tradução: Armando Silva Carvalho
Editor: Assírio & Alvim
Ano: 2004
171 págs., € 13,00
 
 
 



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