segunda-feira, 18 de junho de 2018

D. H. LAWRENCE 2

 
 
O TERCEIRO OLHAR
 
Sempre me intrigou as objecções de inúmeros detractores da obra de D. H. Lawrence, acusando-o de “inapto na construção das estruturas narrativas”, de possuir um “estilo repetitivo”, do carácter “propagandístico da maior parte da sua produção literária”, e, ao nível ideológico, de “pendor fascizante”, de “maniqueísmo sexual” e de “vitalismo reducionista”. E até mesmo alguns analistas e empenhados defensores da sua obra, como é o caso do conceituado especialista que assina o desajeitado prefácio desta edição de St. Mawr e Outros Contos, batem repetidamente na mesma tecla.
 
Não só a maior parte dessas objecções são injustas ou incorrectas, como, em especial, são motivadas por uma básica incompreensão da efectiva dimensão do facto literário e, por conseguinte, do carácter de “poeira residual” dessas “imperfeições” face à radical deslocação no estatuto da sensibilidade que a obra de D. H. Lawrence produziu. E para esta mutação — objectivo que só as obras literárias geniais alcançam - contribuiu uma admirável e inconfundível retórica da paixão, aquela mesma que faz com que este autor, vindo do silêncio que a distância do seu tempo provoca, continue a ser uma das figuras mais comoventemente fascinantes da literatura mundial.
 
Como referem os apêndices que integram a edição de St.Mawr e Outros Contos, D. H. Lawrence escreveu estas histórias em 1924 e 1925, quando, numa segunda estadia no Novo México, procurou, mais uma vez, viver aquela sintonia existencial com a Natureza que apelava, de forma incansável, em todas as suas obras. Mas também é o período em que se começa a sentir, nos seus textos, alguma amargura e cansaço pelos permanentes confrontos com a hipocrisia e mesquinhez dos seus conterrâneos.
 
Estes textos não são, de facto, muito significativos dentro da produção literária de D. H. Lawrence (exceptuando o magnífico conto “A Princesa” que, há alguns anos, foi traduzido, e de forma memorável, por Aníbal Fernandes). Têm, no entanto, o interesse de revelarem algumas subtis transformações que a temática deste autor foi sofrendo ao longo da sua obra.
 
Assim, é bem mais explícita a caracterização da Natureza como uma dinâmica assente na morte. Sobre este aspecto, repare-se na reflexão que, na novela “St.Mawr”, se efectua sobre a relação Cristo/Judas como entidades integrantes de uma “dinâmica natural”: é o comportamento de Cristo que determina o beijo de Judas, sendo este quem dá toda a significação à existência do primeiro, não havendo, por isso, neste jogo, a possibilidade de definir bons e maus. Assim, por definição, a Natureza está “aquém” de qualquer proposição ética.
 
Por conseguinte, uma existência que pretenda estabelecer-se em consonância com a Natureza terá que assumir a morte. É a sua não assumpção, como sinal de um poder desvitalizado que ambiciona impor uma ordem à Natureza, que provoca o aparecimento do mal: é este o motivo por que, em “St. Mawr”, se condena o bolchevismo e o fascismo, acusando-os de procurarem satisfazer o desejo de escravos, de “mortos que gostam de viver no meio da podridão dos cadáveres”.
 
A coisificação do Mal, que estes textos parecem revelar a uma primeira leitura, é ilusória e resultante, pelo contrário, de uma ampla análise de comportamentos. De obra para obra, D. H. Lawrence tinha, de facto, alargado a compreensão da diversidade desse tipo de comportamentos dominantes (tão dominantes que, segundo o autor, são eles que determinam a vocação mais manifesta do institucional e do civilizacional) que, em comum, têm apenas o seu “enquistamento” na frustração e pretenderem, antes do mais, o desvirtuamento do “amor como força natural”. Como se observa em “A Harmonia”, a morte de Pan (a divindade que irradiava aquela imagem do amor) não é tanto consequência do aparecimento de Cristo (a divindade que referencia o amor como ética e discursividade), mas da incapacidade em conseguir a coexistência das duas divindades no horizonte humano.
 
Na sua fragilidade, estes textos realçam ainda mais como o conflito Pan/Cristo representa a angustiante contradição com que D. H. Lawrence sempre viveu: se o homem, como “coluna de carne”, não pode ocultar em si a força da Natureza, ele tem, por outro lado, necessidade de “ver”, de definir discursivamente a Natureza, de forma a não se confinar ao estatuto de “coisa”; mas, ao fazê-lo, o homem tende, de mediato, a construir um Paraíso sobre a Terra, a hierarquizar a Natureza segundo o seu olhar. Entre as duas necessidades, a obra de D. H. Lawrence visou sempre um “terceiro olhar” que as fundisse, e foi nessa ambição que ela soçobrou e se agigantou. Face a esta, as “poeiras residuais”, que se assinala na sua obra, não passam de inevitáveis resquícios de um projecto que ultrapassa a literatura e a vida.
 
Publicado no Público em 1990.
 
Título: St. Mawr e Outros Contos
Autor: D. H. Lawrence
Tradução: Clarisse Tavares
Editor: Livros do Brasil
Ano: 1990
295 págs., esg.
 
 



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