quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

TONI MORRISON 1

 
 
 
 

A ASSOMBRAÇÃO DA DOR

 
Os ameríndios, os judeus (e os palestinianos?), os khmers, os negros americanos, a título de exemplo entre tantos outros povos, sabem, melhor do que ninguém, que, muitas vezes, para sobreviver é necessário esquecer. Mas, sabendo-se também que a memória é a matriz que encaminha o destino dos povos e dos homens, que existência é que fica?

 
É essa a questão que Amada, o último romance da escritora negra Toni Morrison, levanta - de uma forma soberba, diga-se de imediato. Mas, ao mesmo tempo, é também uma impressionante análise dos limites do sofrimento e, por isso mesmo, um autêntico exorcismo da escravatura, essa presença fantasmática que continua a determinar as relações rácicas nos Estados Unidos.

 
Pela primeira vez na sua obra, Toni Morrison resolve regressar ao período da Guerra de Secessão e da abolição da escravatura. A personagem principal de Amada é uma ex-escrava negra, Seth, que, ainda na escravidão, resolveu matar os seus filhos, decidida a não deixar que vivessem a não-vida que tinha sido a sua. Mas, presa na própria circunstância, só consegue degolar uma das filhas; daí em diante, o seu presente vai ficar dominado por este acontecimento: isolada da sua comunidade (que condenou o acto), abandonada pelos filhos varões (que, não entendendo o excessivo amor materno, receavam que voltasse a tentar matá-los), vivendo com a outra filha sobrevivente (que, recusando qualquer contacto com a realidade, se isolou num obstinado mutismo) e sofrendo a assombração da filha morta (que lhe ocupa a casa, afugentando vizinhos e visitantes), Seth está condenada a subsistir na cinzenta opacidade dos que, por excesso de sofrimento, foram roubados da memória e da alegria.

 
 Por isso, a realidade de Seth não tem sentido (ou, mais literalmente, não tem sentidos: Seth deixou de ver a cor e o seu corpo vive a insensibilidade rugosa de uma árvore), tornando-se, em consequência do recalcamento da memória, uma ausência, uma integral fantasmagoria. Quando Paul D., também um ex-escravo vindo do passado de Seth, lhe começa a colorir a realidade através do amor, vê-se obrigado, antes disso, a escorraçar o fantasma, destroçando a casa. Mas Seth ainda não conseguiu serenar o seu passado e, por isso, a sua filha assassinada, encarnada em Amada, “regressa”, exigindo-lhe o amor que, segundo ela, a sua mãe lhe tinha negado com o assassínio, vampirizando-a e tentando expulsar os afectos de Paul D. e da outra filha, Denver. Só quando Seth, no limite das suas forças, sai do seu torpor e tenta matar o Mal, corporizado no “homem sem pele”, no branco, é que Amada, sorrindo, desaparece, dando à sua mãe, pela primeira vez, a possibilidade de um “real concreto”, isto é, um presente com devir.

 
 Creio que esta sinopse, ainda que um pouco longa, permite ao leitor perceber a dimensão simbólica que, não sendo nem demasiado explícita nem linear, as personagens e as situações de Amada assumem. De facto, Toni Morrison não pretendeu fazer uma mera descrição de um drama da escravatura, mas transfigurá-lo de modo a que se torne mais compreensível a raiz sociocultural da actual comunidade negra norte-americana. Por outro lado, não pretendeu também descrever a realidade da escravatura de um ponto de vista “exterior” mas revelá-la de uma forma verdadeiramente “pornográfica” (o adjectivo é da própria autora, ao tentar caracterizar as suas intenções narrativas): através das memorizações, estilhaçadas por um sofrimento insuportável, das diversas personagens de Amada.

 
Mas nada ainda aqui fica dito sobre o fôlego lírico de tantos entrechos, a contenção estilística com que a autora se esquiva a um sentimentalismo fácil, a permanente recriação simbólica e as experiências narrativas sempre adequadas que tornam Amada uma referência fundamental na literatura americana das últimas duas décadas e posicionam Toni Morrison, mesmo tendo presente a importância de autores como Richard Wright, Ralph Ellison e James Baldwin, como uma das mais importantes escritoras de sempre da literatura negra norte-americana.

 
Publicado no Público em 1990.
 
 
(Foto da Autora de Timothy Greenfield-Sanders)

 
Título: Amada (Beloved)
Autor: Toni Morrison
Tradução: Evelyn Kay Massaro
Editora: Difusão Cultural
Ano: 1989
349 págs., esg.
 
 
 

 



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