A
ASSOMBRAÇÃO DA DOR
Os ameríndios,
os judeus (e os palestinianos?), os khmers, os negros americanos, a título de
exemplo entre tantos outros povos, sabem, melhor do que ninguém, que, muitas
vezes, para sobreviver é necessário esquecer. Mas, sabendo-se também que a memória
é a matriz que encaminha o destino dos povos e dos homens, que existência é que
fica?
É essa a
questão que Amada, o último romance da escritora negra Toni Morrison,
levanta - de uma forma soberba, diga-se de imediato. Mas, ao mesmo tempo, é também
uma impressionante análise dos limites do sofrimento e, por isso mesmo, um autêntico
exorcismo da escravatura, essa presença fantasmática que continua a determinar
as relações rácicas nos Estados Unidos.
Pela primeira
vez na sua obra, Toni Morrison resolve regressar ao período da Guerra de Secessão
e da abolição da escravatura. A personagem principal de Amada é uma ex-escrava
negra, Seth, que, ainda na escravidão, resolveu matar os seus filhos, decidida
a não deixar que vivessem a não-vida que tinha sido a sua. Mas, presa na própria
circunstância, só consegue degolar uma das filhas; daí em diante, o seu
presente vai ficar dominado por este acontecimento: isolada da sua comunidade (que
condenou o acto), abandonada pelos filhos varões (que, não entendendo o
excessivo amor materno, receavam que voltasse a tentar matá-los), vivendo com
a outra filha sobrevivente (que, recusando qualquer contacto com a realidade,
se isolou num obstinado mutismo) e sofrendo a assombração da filha morta (que
lhe ocupa a casa, afugentando vizinhos e visitantes), Seth está condenada a subsistir
na cinzenta opacidade dos que, por excesso de sofrimento, foram roubados da memória
e da alegria.
Mas nada
ainda aqui fica dito sobre o fôlego lírico de tantos entrechos, a contenção
estilística com que a autora se esquiva a um sentimentalismo fácil, a
permanente recriação simbólica e as experiências narrativas sempre adequadas que tornam
Amada
uma referência fundamental na literatura americana das últimas duas décadas e
posicionam Toni Morrison, mesmo tendo presente a importância de autores como
Richard Wright, Ralph Ellison e James Baldwin, como uma das mais importantes
escritoras de sempre da literatura negra norte-americana.
Publicado no Público em 1990.
(Foto da Autora de Timothy Greenfield-Sanders)
Título: Amada (Beloved)
Autor: Toni Morrison
Tradução: Evelyn Kay Massaro
Editora: Difusão Cultural
Ano: 1989
349 págs., esg.
Sem comentários:
Enviar um comentário