terça-feira, 31 de dezembro de 2013

JORGE EDWARDS

 
 
 
 
 
A EXPOSIÇÃO DO SEXO

 

A estratégia utilizada nos anos setenta para a irradiação internacional do romance latino-americano assentou numa opção “uniformizadora”: diluíram-se as literaturas nacionais sob aquele epíteto (para isso contribuíram muitas declarações dos próprios autores) e identificou-se este romance com uma única forma de tratamento narrativo - o chamado “realismo mágico”. Esta opção, se teve o inegável mérito de contribuir para tornar o romance latino-americano uma das referências fundamentais na segunda metade deste século, ocultou, principalmente perante o grande público, as diversas variantes estéticas e estilísticas da narrativa que já existiam naquelas paragens e, por outro lado, escamoteou a especificidade das literaturas nacionais, com as poucas excepções das literaturas argentina, cubana e mexicana. Ora, esta estratégia vitoriosa, talvez justificável naquela época, branqueou o percurso e o peso de certas literaturas hispano-americanas, como é o caso, muito particular, da chilena.

 
Já mesmo antes do chamado “boom” latino-americano, a literatura chilena tinha evidenciado nos circuitos internacionais da edição e da cultura a obra de poetas como Vicente Huidobro, Gabriela Mistral e Pablo Neruda (estes dois últimos foram, como é sabido, galardoados com o Prémio Nobel), o que, por si só, dá uma ideia da sua importância. Mas se juntarmos a estes poetas - e só para referirmos autores já conhecidos em Portugal - o nome de romancistas como José Donoso, Francisco Coloane, António Skarmeta, e mesmo sucessos de grande público como Isabel Allende ou Luis Sepulveda, fica-se com plena consciência de que esta literatura é, de facto, uma das mais relevantes do universo hispano-americano. Para o leitor português, faltava, no entanto, entre alguns mais, juntar aos já citados o nome de Jorge Edwards, o romancista de quem foi agora publicado A Origem do Mundo, e que é, com José Donoso, um dos mais significativos autores da geração que despontou na década de sessenta.

 
Esta novela é um exercício literário em redor de uma pintura do naturalismo oitocentista que sofreu um percurso assaz bizarro e significativo: trata-se do pequeno quadro A Origem do Mundo de Courbet que retrata, com enorme realismo, um sexo feminino. Como o próprio Jorge Edwards descreve de passagem no seu livro, parece que este quadro foi encomendado ao pintor por um “bey” turco e durante várias décadas esteve escondido num gabinete reservado, sob uma portinhola mediocremente pintada com uma paisagem bucólica. Depois foi passando de proprietário em proprietário até chegar às mãos de Jacques Lacan, que o guardava na sua casa de campo. Só após a morte deste, é que a sua viúva, filha de Georges Bataille, permitiu a sua exposição pública, passados mais de cem anos de ter sido pintado.

 
Não basta explicar o sigiloso percurso deste quadro pelo seu conteúdo sexual: existem obras com uma dimensão erótica muito maior que não sofreram este destino. É certo que não deve existir nenhuma outra obra na História da Arte que retrate uma vagina com tão minucioso pormenor. Mas, quase de certeza, a razão fundamental do seu percurso - e a sua dimensão perturbantemente transgressora - está relacionada com o despúdico “abandono” ao olhar do pintor que aquele sexo aparenta. E é esta ideia que, de uma forma notória, motivou a homónima novela de Jorge Edwards.

 
O enredo da novela é muito simples: um septuagenário médico chileno, exilado em Paris, e casado com uma mulher mais nova, descobre no espólio de um grande amigo - um D. Juan fisicamente desgastado pelo álcool que resolvera suicidar-se - um conjunto de fotografias das suas amantes, onde se encontra o retrato da sua mulher e uma fotografia de um sexo feminino, mimético do quadro de Courbet, e cujo modelo ele crê ser também ela. Esta descoberta provoca-lhe a uma tão perturbante dúvida sobre se a mulher fora de facto amante do seu amigo que leva-o a sentir que lhe vão soçobrar as forças com a ansiedade.

 
O aspecto mais interessante da novela de Jorge Edwards é que parte do pressuposto que a substância do ciúme está associada a uma “imagem obsessiva”: a disponibilização do sexo do ente amado para outro. A razão principal do transtorno do velho médico está na “imagem” do sexo da sua mulher naquela fotografia e no que, de um modo alucinante, parece representar: a intensidade do desejo dela é tão forte que aceita disponibilizar o seu apelo erótico à reprodução mecânica e, por conseguinte, ao olhar clandestino do seu amante. O que aquela fotografia “expõe” é um desejo de plenitude que a personagem principal não conhece no seu ente amado. E o seu ciúme não é tanto resultante da infidelidade, mas da “revelação” de uma tal intensidade de desejo de plenitude na sua mulher que chega ao ponto de deixar “reproduzir” a parte do corpo que “objectualiza”, em termos simbólicos, o desejo do velho médico. E percebe que essa “visão” é tão contagiante que, por si só, subjuga (e estimula) o seu próprio desejo: desde que ela confessa o seu adultério, ele anseia por “encenar” a situação que deu origem à fotografia, convencido que a disponibilidade assim revelada pela sua mulher lhe bastará para “absorver” a intensidade do desejo que, num determinado momento, ela sentiu por outro.   


Escrito de uma forma aliciante e fluida, A Origem do Mundo revela-se um curioso “estudo” sobre o ciúme e o desejo e, em particular, sobre os mecanismos que levam este a fixar-se, de forma significativa, em objectos e coisas que são testemunhas empenhadas de uma relação erótica. Longe vai o tempo em que uma hipócrita moral dominante remetia a temática desta novela para o “ghetto” simplista do fetichismo...

 

Publicado no Público em 1997.

 


Título: A Origem do Mundo
Autor: Jorge Edwards
Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editor: Difel
Ano: 1997
143 págs., € 10,60

 

 
 
 



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