A LEITURA DE ROMANCE(S)
Durante
a década de cinquenta, prosperou, em Espanha, a geração literária que ergueu o
estandarte do realismo social. Por razões históricas bem conhecidas, esse
aparecimento, em comparação com o resto da Europa, foi já bastante tardio. Daí que
esta geração tenha sido protagonista de um percurso, de certo modo, original:
um número significativo de autores – que empolgadamente contribuiu para impôr
no país vizinho os pressupostos de que a criação artística deveria ser um dos
instrumentos de transformação radical da sociedade e de que os princípios estéticos
se subordinariam aos políticos -, vem, pouco tempo depois, de uma forma mais ou
menos acentuada, a abandoná-los e a afirmar, nem que seja
pela sua prática literária, uma maior autonomia do produto
artístico em relação a ostensivos compromissos ideológicos, a necessidade de uma
maior experiência formal e a compreensão do realismo de uma forma mais abrangente
e complexa do que o simples testemunho.
Foi
também este o percurso da irmandade triangular dos Goytisolo que, de modo bem
intenso, vem iluminando a literatura espanhola deste meio século. Enquanto Juan
Goytisolo tem posto, com uma truculenta genialidade, em questão os valores míticos
da hispanidade, e José Agustin Goytisolo tem satirizado de uma forma implacável,
na sua poesia, os comportamentos sociais e políticos dos seus concidadãos, o
benjamim Luis Goytisolo, depois de, tal como os seus irmãos, ter feito uma inicial
incursão no realismo social e ter dedicado cerca de dezassete anos a redigir a
tetralogia Antagonía (complexa estrutura formal, com diversos níveis estilísticos
e técnicas narrativas, onde serpenteia uma
exaustiva reflexão sobre a ficção), vem, por último, elaborando um conjunto de novelas
e romances de difícil caracterização, mas que, para a unanimidade dos críticos,
está a anos-luz das suas primeiras narrativas.
É desta
recente fase da obra de Luis Goytisolo que foi agora traduzido (e reflectindo um
inusitado, mas de todo justificado, interesse do nosso movimento editorial pela
actual literatura espanhola) o romance O Paradoxo da Ave Migratória. Saliente-se
que este romance, de fluente e, na aparência, fácil
leitura, tem uma significação difícil e até mesmo obscura. A trama resume-se à descrição,
fragmentada, das cumplicidades de um artista plástico (que se encontra em fase
de concepção, início de produção e de rodagem da sua primeira experiência
cinematográfica) com a sua mulher (que, por sua vez,
vai redigindo um diário íntimo, onde anota algumas reflexões sobre as relações
do casal e sobre o enredo do filme que o
marido vai realizar) e outros parentes, das viagens que realiza, das conferências
de imprensa que dá, etc.
Mas
essa obscuridade, aceitando as regras do jogo que estrutura O
Paradoxo da Ave Migratória, não é, como veremos, uma experiência
absurdamente gratuita, pois que todo o romance é construído a procurar manter uma tónica
de “platitude”: esta ideia é transmitida não só porque se eliminou qualquer
situação de clímax, mas também porque é impossível estabelecer qualquer nexo temporal
entre as situações narradas, porque existem constantes mudanças de narrador, e
ainda porque as personagens são introduzidas na narrativa sem se manifestar com
nitidez o papel que vão desempenhar na economia dramática. No fundo, é como se Luis
Goytisolo se esforçasse para que o romance se feche em si mesmo, sem nenhuma rugosidade,
transformando-o numa narrativa onde, sem abandonar o registo realista, qualquer
trabalho de mimésis se revela um permanente logro.
Encontra-se a explicitação
destas estratégias narrativas no enigmático final do romance, quando a personagem
principal fica a saber, pelo operador de câmara, que o seu filme não pretende
mais do que “mostrar” as personagens do diário íntimo da mulher e que este
também é apenas a ”referência real” de um romance que se chama precisamente O
Paradoxo da Ave Migratória. Por outro lado, é nesse final que o leitor
fica a saber que a mulher do futuro realizador morreu muito mais cedo do que se subentende do próprio enredo, como se Luis Goytisolo considerasse que tem o direito de
fazer ou desfazer o destino das suas personagens, depois de elas terem cumprido
o sentido para que foram criadas.
Ora,
o sentido da trama romanesca de O Paradoxo da Ave Migratória
relaciona-se com a impossibilidade de conhecer a verdadeira
motivação dos actos do Outro, e de estes só permitirem uma legibilidade que, de
uma forma inevitável, mesmo que muito frutuosa, será distante da referida
motivação; por conseguinte, de que a existência real do Outro está na constelação
de leituras que dele se façam, esfumando-se este, mal elas terminem.
Mas
o maior fascínio deste romance esta na própria construção romanesca, uma vez
que ela é uma ardilosa demonstração do sentido da sua trama, obrigando o leitor
a um árduo trabalho de leitura e a convencer-se de que esse trabalho, um entre
tantos outros, é a única coisa que subsiste de um romance chamado O
Paradoxo da Ave Migratória e que aquilo que motivou a sua redacção lhe
escapará em definitivo.
Publicado
no Expresso em 1988.
Título:
O Paradoxo da Ave Migratória
Autor:
Luís Goytisolo
Tradutor:
António José Massano
Editor:
Teorema
Ano:
1988
149
págs., 5,04 €
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