terça-feira, 12 de maio de 2015

LUIS GOYTISOLO

 
 
 
 

A LEITURA DE ROMANCE(S)

 

Durante a década de cinquenta, prosperou, em Espanha, a geração literária que ergueu o estandarte do realismo social. Por razões históricas bem conhecidas, esse aparecimento, em comparação com o resto da Europa, foi já bastante tardio. Daí que esta geração tenha sido protagonista de um percurso, de certo modo, original: um número significativo de autores – que empolgadamente contribuiu para impôr no país vizinho os pressupostos de que a criação artística deveria ser um dos instrumentos de transformação radical da sociedade e de que os princípios estéticos se subordinariam aos políticos -, vem, pouco tempo depois, de uma forma mais ou menos acentuada, a abandoná-los e a afirmar, nem que seja pela sua prática literária, uma maior autonomia do produto artístico em relação a ostensivos compromissos ideológicos, a necessidade de uma maior experiência formal e a compreensão do realismo de uma forma mais abrangente e complexa do que o simples testemunho.

 
Foi também este o percurso da irmandade triangular dos Goytisolo que, de modo bem intenso, vem iluminando a literatura espanhola deste meio século. Enquanto Juan Goytisolo tem posto, com uma truculenta genialidade, em questão os valores míticos da hispanidade, e José Agustin Goytisolo tem satirizado de uma forma implacável, na sua poesia, os comportamentos sociais e políticos dos seus concidadãos, o benjamim Luis Goytisolo, depois de, tal como os seus irmãos, ter feito uma inicial incursão no realismo social e ter dedicado cerca de dezassete anos a redigir a tetralogia Antagonía (complexa estrutura formal, com diversos níveis estilísticos e técnicas narrativas, onde serpenteia uma exaustiva reflexão sobre a ficção), vem, por último, elaborando um conjunto de novelas e romances de difícil caracterização, mas que, para a unanimidade dos críticos, está a anos-luz das suas primeiras narrativas.

 
É desta recente fase da obra de Luis Goytisolo que foi agora traduzido (e reflectindo um inusitado, mas de todo justificado, interesse do nosso movimento editorial pela actual literatura espanhola) o romance O Paradoxo da Ave Migratória. Saliente-se que este romance, de fluente e, na aparência, fácil leitura, tem uma significação difícil e até mesmo obscura. A trama resume-se à descrição, fragmentada, das cumplicidades de um artista plástico (que se encontra em fase de concepção, início de produção e de rodagem da sua primeira experiência cinematográfica) com a sua mulher (que, por sua vez, vai redigindo um diário íntimo, onde anota algumas reflexões sobre as relações do casal e sobre o enredo do filme que o marido vai realizar) e outros parentes, das viagens que realiza, das conferências de imprensa que dá, etc.

 
Mas essa obscuridade, aceitando as regras do jogo que estrutura O Paradoxo da Ave Migratória, não é, como veremos, uma experiência absurdamente gratuita, pois que todo o romance é construído a procurar manter uma tónica de “platitude”: esta ideia é transmitida não só porque se eliminou qualquer situação de clímax, mas também porque é impossível estabelecer qualquer nexo temporal entre as situações narradas, porque existem constantes mudanças de narrador, e ainda porque as personagens são introduzidas na narrativa sem se manifestar com nitidez o papel que vão desempenhar na economia dramática. No fundo, é como se Luis Goytisolo se esforçasse para que o romance se feche em si mesmo, sem nenhuma rugosidade, transformando-o numa narrativa onde, sem abandonar o registo realista, qualquer trabalho de mimésis se revela um permanente logro.

 
Encontra-se a explicitação destas estratégias narrativas no enigmático final do romance, quando a personagem principal fica a saber, pelo operador de câmara, que o seu filme não pretende mais do que “mostrar” as personagens do diário íntimo da mulher e que este também é apenas a ”referência real” de um romance que se chama precisamente O Paradoxo da Ave Migratória. Por outro lado, é nesse final que o leitor fica a saber que a mulher do futuro realizador morreu muito mais cedo do que se subentende do próprio enredo, como se Luis Goytisolo considerasse que tem o direito de fazer ou desfazer o destino das suas personagens, depois de elas terem cumprido o sentido para que foram criadas.

 
Ora, o sentido da trama romanesca de O Paradoxo da Ave Migratória relaciona-se com a impossibilidade de conhecer a verdadeira motivação dos actos do Outro, e de estes só permitirem uma legibilidade que, de uma forma inevitável, mesmo que muito frutuosa, será distante da referida motivação; por conseguinte, de que a existência real do Outro está na constelação de leituras que dele se façam, esfumando-se este, mal elas terminem.

 
Mas o maior fascínio deste romance esta na própria construção romanesca, uma vez que ela é uma ardilosa demonstração do sentido da sua trama, obrigando o leitor a um árduo trabalho de leitura e a convencer-se de que esse trabalho, um entre tantos outros, é a única coisa que subsiste de um romance chamado O Paradoxo da Ave Migratória e que aquilo que motivou a sua redacção lhe escapará em definitivo.

 

Publicado no Expresso em 1988.

 

Título: O Paradoxo da Ave Migratória
Autor: Luís Goytisolo
Tradutor: António José Massano
Editor: Teorema
Ano: 1988
149 págs., 5,04 €




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