AGARRAR A
LUZ
Quem se
inicia num conhecimento mais sistemático da literatura americana deste século
fica sempre impressionado com o peso que nela tem os autores de origem judaica.
Se nos delimitarmos a uma simples constatação na área da ficção da segunda
metade do séc. XX, conseguimos, sem muita dificuldade, elaborar uma lista muito
diversificada com nomes como Paul Auster, Saul Bellow, E. L. Doctorow, Stanley
Elkin, Bruce Jay Friedman, Joseph Heller, Bernard Malamud, Norman Mailer,
Cynthia Ozick, Grace Paley, Mordecai Richler, Henry e Philip Roth, J. D.
Salinger, Susan Sontag, Leon Uris e Herman Wouk (deixando de fora autores, como
I. Bashevis Singer, que, sendo também americanos, escreveram fundamentalmente
em yiddish). Sobre esta presença da tradição cultural judaica nas letras
americanas, já muito se escreveu e inúmeras teorias foram arquitectadas. Mas,
abandonando as razões deste fenómeno, talvez se possa, no entanto, fazer uma
constatação que muitas vezes não é ponderada ao analisar-se a América dos dias
de hoje: é que, em paralelo à matriz puritana, a cultura americana assenta as
suas raízes na tradição judaica e que a presente imagem da chamada “América
branca” deve muito dos seus contornos ao constante ascendente que figuras, com
uma formação cultural base de origem judaica, têm na vida cultural, social e
política americana.
Uma das
figuras mais proeminentes desta comunidade é o escritor Saul Bellow. Este
autor, filho de pais russos, hoje com oitenta e cinco anos, que se casou cinco
vezes, dos quais teve quatro filhos (a última filha tem pouco mais de um
ano...), é decerto o escritor vivo americano mais consagrado, tanto no seu país
como internacionalmente. Sem ter a exposição pública de um Gore Vidal, por
exemplo, Saul Bellow, a par de uma respeitável carreira académica, tem sido um
dos “tenores” mais empenhados na vida cultural americana, assumindo posições
que, tendo uma postura pró-conservadora (ainda hoje são recordadas as suas
posições, numa afrontosa polémica com Norman Mailer, contra a “revolução
sexual” dos anos sessenta ou a atitude ambígua que assumiu em relação à Guerra
do Vietname), sempre incomodaram a Gregos e a Troianos (recordo, por exemplo, o
seu apoio público em favor das minorias étnicas ou contra a proliferação
nuclear). Além disso, não só com a sua obra de romancista (deve recordar-se que
Saul Bellow ganhou três vezes, caso inédito, o National Book Award, com As
Aventuras de Augie March, Herzog e Mr. Sammler’s Planet, uma
vez o Prémio Pulitzer, com Humboldt’s Gift, e, em 1976, o Prémio
Nobel), mas também com o seu trabalho crítico, foi um dos autores que mais
“marcas” deixou na produção literária americana das últimas três ou quatro
décadas (hoje, são inúmeros os autores de língua inglesa que reconhecem o
legado de Bellow na sua própria obra).
Nascido no
Canadá, ainda adolescente veio com a família para Chicago (onde Saul Bellow,
exceptuando breves períodos, sempre viveu) e aí se matriculou na Universidade,
à qual, mais tarde, ficou ligado como professor. Depois de ter servido como
marinheiro na II Guerra Mundial, Saul Bellow iniciou a sua carreira literária,
publicando, em 1947, o seu primeiro romance, The Dangling Man. Mas é
com o seu terceiro romance, As Aventuras de Augie March, já
liberto das influências de Ernest Hemingway, que, em 1953, obteve o
reconhecimento da crítica e do público. Desencadeia-se então a fase mais
poderosa da sua produção literária, publicando, de seguida, a magnífica novela Agarra
o Dia, Herderson, o Rei da Chuva, Herzog, Mr. Sammler’s Planet e,
já em 1975, Humboldt’s Gift. A partir dessa data, mantendo, no entanto, uma
inquestionável qualidade literária, a obra de Saul Bellow deixa, de certo modo,
de manter o mesmo fulgor criativo (é desta fase que pertencem obras como Dean’s
December, e as novelas A Theft, A Organização Bellarosa e
a que agora foi publicada nosso país, intitulada A Autêntica). Já no
corrente ano, Saul Bellow publicou um romance, Ravelstein (segundo
anúncia o editor português, será em breve publicado também no nosso país), que
gerou uma enorme polémica, por colocar a nu a vida privada do seu colega e
amigo Allan Bloom, prestigiado académico e autor de The Closing of the American Mind
- uma obra-farol do conservadorismo americano - que, parece, morreu de SIDA em
1992.
Não é fácil
caracterizar em termos globais a obra de Saul Bellow. Porém, é habitual
evidenciar o brilhantismo do seu estilo clássico, a profunda erudição que se
infiltra na narrativa de forma intersticial, a tessitura assente numa reflexão
monologal das suas personagens principais, a forma como as tramas e as
personagens secundárias são apresentadas por “pinceladas impressionistas” e,
por fim, a invulgar lucidez da suas análises que parecem não se deter perante
nenhum dos mitos ou valores socialmente enraízados. De facto, todas as suas
personagens, mesmo mergulhadas no maior dos turbilhões emocionais ou sofrendo
traumáticos desajustamentos sociais, procuram, de uma forma quase épica,
racionalizar o que lhes sucede, numa convicção desesperada de que ainda é
possível tudo compreender e que a compreensão dos problemas, como por magia,
tudo resolverá. É esta crença na racionalidade que faz de Saul Bellow um dos
últimos grandes “discípulos” da “filosofia das Luzes” (o século XVIII é, por
excelência, o seu período de referência civilizacional) num mundo onde a
falência da democracia e da ciência, para, por si só, resolverem os grandes
problemas da humanidade, se tornou inquestionável.
A novela
(um género que Saul Bellow tem explorado nos últimos anos) A Autêntica é, antes do
mais, uma original história de amor, passada, mais uma vez, na “sua” Chicago.
Mas, deixando de lado a trama que, como nas restantes obras deste autor, não é
a componente mais conseguida, é importante realçar que a sua personagem
principal (um sexagenário que, depois de ter obtido algum capital com negócios
um pouco obscuros, efectuados durante a sua estadia na China e na Birmânia,
resolveu regressar à cidade “onde estavam as suas raízes afectivas” e aí
instalar uma empresa de importações) está profundamente convicto de que as
pessoas vivem como colunas de carne envoltas em nebulosas de conceitos e
palavras, absorvidos do exterior, e que é a fluidez destes que origina a
incapacidade de compreender a realidade. É este pessimismo que o levou a uma
postura anti-romântica e céptica e que lhe motivou a atitude de nada fazer para
se aproximar da sua antiga paixão dos tempos de liceu e por quem manteve, ao
longo dos anos, um amor inquebrável. Quando volta a contactá-la e, numa cena um
pouco bizarra, mas poderosa de sentido, a pede em casamento, percebe então que
a “sua afinidade autêntica” ultrapassa a mutabilidade temporal do conceito de
“amor” e que era essa emoção não-descrita, latejando-lhe na carne, mas
exteriormente muda, que devia ter-lhe orientado a vida. E que essa emoção é
eterna, ou, por outras palavras, está sempre presente, uma vez que nem o
envelhecimento do corpo nem o aviltamento das situações (é necessário salientar
que, tanto a personagem principal como a sua amada, passaram por diversos
casamentos e que, no caso desta, houve um divórcio litigioso, fundamentado numa
revelação escandalosa de “manifestações íntimas” do acto de adultério) consegue
modificar. Mais uma vez, o que sai reforçado nesta novela, é a importância que
o autor dá à experiência pessoal como instrumento de desbravamento e
reformulação conceptual, retomando, por conseguinte, a velha tradição realista
do romance americano.
(…)
Publicado
no Público em 2000.
Título: A Autêntica
Autor: Saul Bellow
Tradução: Rui Zink
Editor: Teorema
Ano: 2000
137 págs.,
12,90 €
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