quinta-feira, 14 de maio de 2015

SAUL BELLOW 1

 
 
 
 
 
 

AGARRAR A LUZ

 

Quem se inicia num conhecimento mais sistemático da literatura americana deste século fica sempre impressionado com o peso que nela tem os autores de origem judaica. Se nos delimitarmos a uma simples constatação na área da ficção da segunda metade do séc. XX, conseguimos, sem muita dificuldade, elaborar uma lista muito diversificada com nomes como Paul Auster, Saul Bellow, E. L. Doctorow, Stanley Elkin, Bruce Jay Friedman, Joseph Heller, Bernard Malamud, Norman Mailer, Cynthia Ozick, Grace Paley, Mordecai Richler, Henry e Philip Roth, J. D. Salinger, Susan Sontag, Leon Uris e Herman Wouk (deixando de fora autores, como I. Bashevis Singer, que, sendo também americanos, escreveram fundamentalmente em yiddish). Sobre esta presença da tradição cultural judaica nas letras americanas, já muito se escreveu e inúmeras teorias foram arquitectadas. Mas, abandonando as razões deste fenómeno, talvez se possa, no entanto, fazer uma constatação que muitas vezes não é ponderada ao analisar-se a América dos dias de hoje: é que, em paralelo à matriz puritana, a cultura americana assenta as suas raízes na tradição judaica e que a presente imagem da chamada “América branca” deve muito dos seus contornos ao constante ascendente que figuras, com uma formação cultural base de origem judaica, têm na vida cultural, social e política americana.

 
Uma das figuras mais proeminentes desta comunidade é o escritor Saul Bellow. Este autor, filho de pais russos, hoje com oitenta e cinco anos, que se casou cinco vezes, dos quais teve quatro filhos (a última filha tem pouco mais de um ano...), é decerto o escritor vivo americano mais consagrado, tanto no seu país como internacionalmente. Sem ter a exposição pública de um Gore Vidal, por exemplo, Saul Bellow, a par de uma respeitável carreira académica, tem sido um dos “tenores” mais empenhados na vida cultural americana, assumindo posições que, tendo uma postura pró-conservadora (ainda hoje são recordadas as suas posições, numa afrontosa polémica com Norman Mailer, contra a “revolução sexual” dos anos sessenta ou a atitude ambígua que assumiu em relação à Guerra do Vietname), sempre incomodaram a Gregos e a Troianos (recordo, por exemplo, o seu apoio público em favor das minorias étnicas ou contra a proliferação nuclear). Além disso, não só com a sua obra de romancista (deve recordar-se que Saul Bellow ganhou três vezes, caso inédito, o National Book Award, com As Aventuras de Augie March, Herzog e Mr. Sammler’s Planet, uma vez o Prémio Pulitzer, com Humboldt’s Gift, e, em 1976, o Prémio Nobel), mas também com o seu trabalho crítico, foi um dos autores que mais “marcas” deixou na produção literária americana das últimas três ou quatro décadas (hoje, são inúmeros os autores de língua inglesa que reconhecem o legado de Bellow na sua própria obra).

 
Nascido no Canadá, ainda adolescente veio com a família para Chicago (onde Saul Bellow, exceptuando breves períodos, sempre viveu) e aí se matriculou na Universidade, à qual, mais tarde, ficou ligado como professor. Depois de ter servido como marinheiro na II Guerra Mundial, Saul Bellow iniciou a sua carreira literária, publicando, em 1947, o seu primeiro romance, The Dangling Man. Mas é com o seu terceiro romance, As Aventuras de Augie March, já liberto das influências de Ernest Hemingway, que, em 1953, obteve o reconhecimento da crítica e do público. Desencadeia-se então a fase mais poderosa da sua produção literária, publicando, de seguida, a magnífica novela Agarra o Dia, Herderson, o Rei da Chuva, Herzog, Mr. Sammler’s Planet e, já em 1975, Humboldt’s Gift. A partir dessa data, mantendo, no entanto, uma inquestionável qualidade literária, a obra de Saul Bellow deixa, de certo modo, de manter o mesmo fulgor criativo (é desta fase que pertencem obras como Dean’s December, e as novelas A Theft, A Organização Bellarosa e a que agora foi publicada nosso país, intitulada A Autêntica). Já no corrente ano, Saul Bellow publicou um romance, Ravelstein (segundo anúncia o editor português, será em breve publicado também no nosso país), que gerou uma enorme polémica, por colocar a nu a vida privada do seu colega e amigo Allan Bloom, prestigiado académico e autor de The Closing of the American Mind - uma obra-farol do conservadorismo americano - que, parece, morreu de SIDA em 1992.

 
Não é fácil caracterizar em termos globais a obra de Saul Bellow. Porém, é habitual evidenciar o brilhantismo do seu estilo clássico, a profunda erudição que se infiltra na narrativa de forma intersticial, a tessitura assente numa reflexão monologal das suas personagens principais, a forma como as tramas e as personagens secundárias são apresentadas por “pinceladas impressionistas” e, por fim, a invulgar lucidez da suas análises que parecem não se deter perante nenhum dos mitos ou valores socialmente enraízados. De facto, todas as suas personagens, mesmo mergulhadas no maior dos turbilhões emocionais ou sofrendo traumáticos desajustamentos sociais, procuram, de uma forma quase épica, racionalizar o que lhes sucede, numa convicção desesperada de que ainda é possível tudo compreender e que a compreensão dos problemas, como por magia, tudo resolverá. É esta crença na racionalidade que faz de Saul Bellow um dos últimos grandes “discípulos” da “filosofia das Luzes” (o século XVIII é, por excelência, o seu período de referência civilizacional) num mundo onde a falência da democracia e da ciência, para, por si só, resolverem os grandes problemas da humanidade, se tornou inquestionável.

 
A novela (um género que Saul Bellow tem explorado nos últimos anos) A Autêntica é, antes do mais, uma original história de amor, passada, mais uma vez, na “sua” Chicago. Mas, deixando de lado a trama que, como nas restantes obras deste autor, não é a componente mais conseguida, é importante realçar que a sua personagem principal (um sexagenário que, depois de ter obtido algum capital com negócios um pouco obscuros, efectuados durante a sua estadia na China e na Birmânia, resolveu regressar à cidade “onde estavam as suas raízes afectivas” e aí instalar uma empresa de importações) está profundamente convicto de que as pessoas vivem como colunas de carne envoltas em nebulosas de conceitos e palavras, absorvidos do exterior, e que é a fluidez destes que origina a incapacidade de compreender a realidade. É este pessimismo que o levou a uma postura anti-romântica e céptica e que lhe motivou a atitude de nada fazer para se aproximar da sua antiga paixão dos tempos de liceu e por quem manteve, ao longo dos anos, um amor inquebrável. Quando volta a contactá-la e, numa cena um pouco bizarra, mas poderosa de sentido, a pede em casamento, percebe então que a “sua afinidade autêntica” ultrapassa a mutabilidade temporal do conceito de “amor” e que era essa emoção não-descrita, latejando-lhe na carne, mas exteriormente muda, que devia ter-lhe orientado a vida. E que essa emoção é eterna, ou, por outras palavras, está sempre presente, uma vez que nem o envelhecimento do corpo nem o aviltamento das situações (é necessário salientar que, tanto a personagem principal como a sua amada, passaram por diversos casamentos e que, no caso desta, houve um divórcio litigioso, fundamentado numa revelação escandalosa de “manifestações íntimas” do acto de adultério) consegue modificar. Mais uma vez, o que sai reforçado nesta novela, é a importância que o autor dá à experiência pessoal como instrumento de desbravamento e reformulação conceptual, retomando, por conseguinte, a velha tradição realista do romance americano.

(…)

 
Publicado no Público em 2000.

 
Título: A Autêntica
Autor: Saul Bellow
Tradução: Rui Zink
Editor: Teorema
Ano: 2000
137 págs., 12,90 €
  
 
 



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