sábado, 2 de maio de 2015

MANUEL VÁZQUEZ MONTÁLBAN


 
 
 

A REABILITAÇÃO DE UM LUGAR HISTÓRICO

 

A obra de Manuel Vázquez Montálban, entre outras vertentes que tem desenvolvido, representa, no contexto da literatura espanhola, a corrente ficcionista contemporânea que procura renovar o género do romance “negro”, introduzindo, na sua estrutura tradicional, novas técnicas estilísticas e narrativas.
 
A publicação em português, através de uma excelente tradução de Manuel de Seabra, de um dos últimos romances deste autor, Assassinato no Comité Central, permite constatar que alguns dos elementos narrativos, pelos quais Manuel Vázquez Montálban procura introduzir esse movimento de renovação na malha tipológica do romance “negro” clássico, resultam da integração de características e técnicas estilísticas que são comuns a ficções de outros géneros. No caso presente, torna-se bem evidente que se procura integrar, na estrutura do romance “negro”, o género, muito explorado a partir dos anos setenta com significativos resultados comerciais, da “ficção política”.
 
O aparecimento deste livro no nosso país, quando se desconhece, em termos de edição portuguesa, quase tudo o que de importante a ficção espanhola contemporânea produziu, realça, enquadrado com outros factos, um fenómeno sociocultural de certo significado.
 
Constata-se, de facto, na edição portuguesa, um renascer de interesse, como género revalorizado culturalmente, pelo romance policial. Repare-se, por exemplo, nas novas colecções de editoras tão prestigiadas como "A Regra do Jogo" ou a "Publicações Dom Quixote", na reedição de velhos títulos, encarados agora de outro modo, da conhecida Col. Vampiro de "Os Livros do Brasil", ou ainda na edição de obras completas, nesta última editora, dos autores clássicos do género.
 
É de crer que tal revalorização tem, por parte das editoras, não só razões culturais, mas também comerciais e financeiras, já que parece evidente que a sua aposta é explorar o mercado amplo e seguro deste tipo de literatura para assim compensar a debilidade comercial de outro tipo de edições.
 
No entanto, semelhante fenómeno seria de menor significado se não fosse acompanhado, como possível resposta a este interesse das editoras, duma tentativa de (re)aparecimento de um romance policial português. De facto, como é do conhecimento geral, até hoje, os autores portugueses, para comercializarem o seu "produto", eram “obrigados” a “americanizarem”, através de um pseudónimo, o seu próprio nome, assim como a "realidade romanesca" que tratavam. Este novo interesse parece, por conseguinte, dar garantias para que se abandone estes procedimentos, permitindo que os nossos escritores deixem de ocultar a sua nacionalidade e possam conceber tramas contextualizadas na nossa realidade.
 
A criação ficcionista, desde sempre, apelou, na generalidade, a uma relação com a “vida” - essa noção difusa, mas que se reconhece como concreta. Principalmente no período clássico do romance, essa relação foi assumida como “natural”: a ficção era a vida em forma de narração. E assim as personagens e as situações eram imaginadas… mas deviam ser assumidas como se fossem reais; os lugares eram inventados, mas deviam ter a vida dos que existem.
 
Todavia, para que essa relação fosse encarada pelo leitor como "natural", era necessário que fosse “iludida” a existência não tanto de um narrador (que muitas vezes é, de modo expresso, entendido como o olhar fundamental para introduzir o leitor na “vida” das suas personagens), mas da própria narração. A narrativa clássica, se mantem alguma constante, é a de procurar atenuar-se, diluir-se, tornar-se fluída.
 
Semelhante estratégia da narrativa clássica é resultante da necessidade de satisfazer plenamente uma das características de toda a ficção: a de integrar no real quotidiano do leitor, “iludindo-o”, uma outra “realidade” que lhe satisfaça desejos (isto é, prazeres, interesses) conjunturais de conhecimento e reflexão.
 
Um dos elementos, que caracteriza a literatura de género, está na forma como organiza de um modo estratégico essa capacidade “ilusória” da ficção.
 
O romance policial tem sempre uma energia que o conduz a um desfecho: um mistério de tipo criminal que é necessário resolver e neutralizar, concluindo-se a narrativa com o esgotamento dessa energia.
 
Essa energia é (di)gerida habitualmente por um detective que arrasta o leitor, como um animal pela trela, de situação em situação, por percursos (pistas) falsos e verdadeiros, contactando com personagens e com objectos como personagens. E o detective segue esse caminho, não tanto por qualquer mecanismo perverso incutido pelo autor à sua personagem, e por esta ao leitor, mas porque vai revelando-se, mesmo que conhecedor de técnicas especiais para a resolução de situações congéneres, demasiado, demasiado humano.
 
Um romance policial não é, portanto, constituído por um único percurso. Pelo contrário, é constituído por percursos falsos que ‘iludem’ e enevoam o percurso principal. É essa malha ilusória que o constitui.
 
Ora, grande parte do prazer, que o leitor retira do romance policial, está na própria sujeição a que a sua trama ilusória o obriga, está em sentir-se de facto “atrelado” ao detective e aos percursos a que, com ele, é levado: dessa sujeição advém grande parte do prazer do “suspense”. E nos casos em que o leitor consegue libertar-se dessa trama, e alcança com facilidade o percurso principal, retira disso apenas um sentimento fruste e logo classifica o romance de “mal construído”.
 
A “ficção política”, pelo contrário, não exige um processo de transposição tão completo do leitor para a ‘realidade romanesca’ como o romance policial. A “ficção política” suscita um compromisso claro ao leitor: o conhecimento de uma realidade que será partilhada pelo próprio romance e que servirá de ponto de partida para a recriação de uma “realidade romanesca” que serve de hipótese de alternativa plausível da realidade partilhada.
 
A realidade que o leitor conhece passa a ser um constante referente que deve “prender” sempre a própria construção romanesca. Tem, por isso, de elaborar-se, de forma coerente, toda a trama romanesca, de modo a que as pessoas reais e as conjunturas históricas sejam bem reconhecíveis nas personagens e nas situações romanescas.
 
O livro de Manuel Vázquez Montálban, Assassinato no Comité Central, procura, como se verá, conciliar estas duas estratégias romanescas díspares.
 
O romance prende de imediato o leitor pela sua “inteligência”. Isto é, entusiasma-o por um “know-how” de uma escrita que encadeia, sem grandes “tournures”, situações e personagens, cativa-o pela mestria extrema na construção dos diálogos, diverte-o com o humor cosmopolita com que são descritos os comportamentos da Espanha pós-franquista, enfim, alicia-o com uma técnica e uma concisão estilística que impõem um ritmo narrativo que é conseguido até ao final.
 
Mesmo da sombra tutelar do "romance negro” americano, donde “nasce”, em termos estilísticos, este livro, se recolhe inegável prazer: a construção frásica é ritmada com o desenvolvimento narrativo e a formação de personagens, que são concebidas não pela sua "riqueza de interior" ou pelos seus "meandros psicológicos", mas pela sua atitude comportamental e pelo seu percurso. Daí a importância concedida a certos elementos, que poderiam ser considerados como “desperdício” romanesco, tais como os tiques e os hábitos: note-se o relevo dado, por exemplo, para a caracterização da personagem principal, o detective Carvalho, a “hobbies” como a gastronomia e a culinária.
 
Contudo, pensamos que a inteligência deste romance mostra-se, em particular, no modo conseguido como resolve os objectivos estratégicos que a si próprio impõe e que são, de certa forma, “restritos” (isto é, bem situáveis em termos históricos): o primeiro, já referido, inerente à transformação das estruturas narrativas, em que se procura imbricar as tramas “ilusórias” que estruturam os géneros literários, neste caso, os do romance policial (ou melhor, o do subgénero que é o “romance negro”) e da “ficção política”, dissolvendo-os; o segundo, político, em que se tenta revelar o que é um Partido Comunista “de tipo ocidental”, não tanto pela sua dinâmica como colectivo, mas antes através da análise da sua composição social, destruindo assim uma imagem muito maniqueísta que, eventualmente, o público tradicional do género policial terá do militante deste tipo de organizações.
 
Manuel Vázquez Montálban constrói, de facto, um romance com todas as personagens e situações “negras” habituais: o detective, ser solitário, trabalhando à margem do instituído; um assassínio (núcleo do tal mistério que move toda a engrenagem romanesca) realizado em “huis-clos”, quase perfeito, calculado; a maléfica sedutora que, ao serviço das grandes organizações internacionais, põe em perigo o detective; os policias mais ou menos corruptos, etc.
 
Mas um pequeno movimento é logo, no respeitante ao "romance negro” tradicional, produzido: as analogias, aos clássicos deste género, ao ambiente americano onde nasceu, aparecem de forma sistemática, assumindo-se essa “realidade romanesca” já não só como referência, mas como “influência”, dando-lhe assim um estatuto cultural que distancia este romance dessa produção narrativa.
 
Este movimento torna-se ainda mais acentuado, já que Assassinato no Comité Central se desenvolve numa geografia estranha à de origem do "romance negro” tradicional: todo ele se processa nas ruas de Madrid ou de Barcelona, entre um povo espanhol bem definido em termos culturais, e muito longe, portanto, da característica geografia urbana (e social) americana. Por isso, o leitor sente-se confrontado com uma situação atípica ao "romance negro” tradicional e terá tendência a encarar as habituais cenas de violência como "importadas".
 
A eliminação do carácter “importado” das referidas cenas e a necessidade de fazer aceitar pelo leitor a “real” eventualidade das situações descritas são conseguidas com o entrecruzamento da “ficção política”. O assassinato do secretário-geral do PCE, num clima fortemente emocional da sociedade espanhola, motivado pela debilidade da sua recente democracia e pela existência de grandes forças sociais antagónicas, constrói uma situação plausível para o comum leitor, que torna aceitável a trama romanesca.
 
É nesse sentido que funcionam também as descrições muito pormenorizadas da paisagem madrilena e barcelonesa. Mas esse quadro é ainda reforçado com a introdução de instituições, políticas ou não, bem conhecidas, assim como a referência a pessoas reais que “compõem” o meio cultural e político espanhol (o caso de Rafael Alberti, de Tierno Galvan, do próprio autor, etc.), ou a inclusão de personagens que são, com um nome aproximado, um claro decalque de pessoas reconhecíveis com alguma facilidade no meio acima referido (o caso de personagens como Fernando Garrido, Martialay, Salvatter, Sixto Cerdan, etc.).
 
Estas últimas personagens têm, no entanto, uma outra função: para além de referências mais ou menos explícitas ao mundo cultural e político espanhol, facilitando assim a integração duma trama “ilusória” que, em princípio, lhe era alheia, servem também para introduzir novos tipos de personagens nessa mesma trama, modernizando-a e adaptando-a a uma conjuntura que, sem elas, seria de difícil compreensão.
 
Se exceptuarmos algumas tentativas de entrecruzamento da “fala” do narrador com as das personagens, certa barroquização descritiva que se realça nos comentários transversais, de grande intensidade irónica, à sociedade espanhola, pode dizer-se que Assassinato no Comité Central pouco altera a estrutura romanesca clássica. De facto, o movimento oscilatório que vai do "romance negro” tradicional à “ficção política” e que constitui, no essencial, este livro, dá-lhe objectivos circunscritos: diluir a estrutura tradicional do "romance negro”, integrando-a ao mesmo tempo numa geografia que lhe é alheia e que o leitor tem tendência a rejeitar.
 
Mas a grande revelação do domínio oficinal de Manuel Vázquez Montálban está em certa sintonia conseguida entre este movimento e outro similar, mas de objectivos, na sua predominância, políticos: o autor procura, através do tipo de personagens que apresenta, da crítica e do louvor a certas contradições do aparelho partidário e da sua acção, dos comentários feitos à situação política internacional, um oscilar afectivo e ideológico que produz, aos olhos do leitor, um efeito de neutralidade, e, por consequência, de objectividade.
 
Veja-se o caso da personagem principal, o detective Carvalho, ex-militante comunista (afastado pela impossibilidade de uma estrutura tão solene como um partido comunista suportar uma atitude irónica face à vida e a si próprio), ex-agente da ClA (por descrédito ideológico e cepticismo social), que, como se percebe pelo percurso e pelo seu olhar sobre as coisas, é a clara corporização desse movimento oscilatório.
 
Semelhante efeito de neutralidade, de desligamento irónico face à matéria tratada, é fundamental na estratégia deste romance, porque ele, se exceptuarmos o seu notório antifascismo, dilui o lugar ideológico donde parte a radiografia de certas contradições da sociedade espanhola (a permissividade sexual e erótica, a ansiosa busca de um comportamento cosmopolita por parte da juventude, os conflitos laborais, o terrorismo constante, a obsessão separatista, as dúvidas e interrogações pelo processo de consolidação democrático e pela integração europeia, etc.) e a análise dos problemas com que se debate o Partido, não só como aparelho, mas, em particular, como conjunto integrado de militantes individuais (o conflito entre militantes formados na clandestinidade e os formados na legalidade, os hábitos enraizados e maximalizados de perseguição, a desconfiança face às legalidades formais do sistema, o seguidismo, o dirigismo e a voluntarismo, as dificuldades de articulação entre projecto pessoal e colectivo, etc.).
 
Manuel Vázsquez Montálban resolve tomar à letra a ideia, querida aos comunistas, de que o Comité Central representa, na sua diversidade, as componentes sociais progressistas, e, assim, aproveitando-se das investigações que o detective Carvalho vai realizando entre os principais suspeitos, analisar não só a composição social do Partido, como revelar também o militante comunista como um cidadão com projectos e ambições comuns.
 
Desse modo, delineia o perfil de vários tipos, desde o intelectual heterodoxo que vive em sistemática contradição esse estatuto com o de militante (Paco Leveder), o caso do "intelectual clássico", preocupado em aplicar uma competência de saber concreta a uma sensibilidade revolucionária (Sepulveda Civit), o militante de raíz operária cuja vida foi sempre condicionada, com acção e sofrimento, pelo destino que o próprio Partido lhe impôs (Marcos Ordoñez), o esquerdista convertido que procura transformar o Partido, mas cujo aparelho lhe criou uma rotina militante que o desmotiva e cansa (Lacumberri Aranaz), até ao pequeno empresário ambicioso (Esparza Julve) ou o militante rural (Escapá Azancot).
 
Fora deste quadro de suspeitos pertencentes ao Comité Central, só aparecem mais dois retratos que, como militantes, têm uma interligação nuclear: Santos Pacheco e Carmela.
 
Qualquer deles estão profundamente identificados, de forma diversa, com a imagem que o discurso colectivo do Partido elabora de si próprio. Santos Pacheco, eliminando de si as imagens, em teoria alternativas, com que o exterior e o interior do próprio aparelho partidário se digladiam, sintoniza-se com aquela que o próprio colectivo, como veículo, impõe. Carmela, a militante de base, como veículo da imagem que o Partido faz dele, impõe, a si e em seu redor, essa mesma imagem. É este ciclo que faz com que Santos Pacheco seja o alter-ego ético do Partido, isto é, o alter-ego ético de Carmela. Repare-se como aquele reage às hipóteses de assassino levantadas por Carvalho ou na carta que envia a este, despedindo-se do mundo.
 
Para lá dos objectivos principais atrás enunciados, é evidente que Assassinato no Comité Central procura atingir objectivos secundários, alguns deles dignos de realce.
 
Um deles relaciona-se com a revisão do próprio estatuto do intelectual na sociedade contemporânea, utilizando, para isso, o bifronte Paco Leveder/Sixto Cerdan.
 
Paco Leveder é o caso do intelectual que, em consequência deste estatuto, sofre a desconfiança do aparelho, visto que é incapaz de uma total conversão a um discurso unívoco. Reconhece, no entanto, que, só aceitando um lugar histórico (o Partido), pode ter alguma eficácia na História, alguma organicidade social. Por isso, o Partido é para Leveder um Modelo de discurso colectivo com que ele se confronta, não lhe reconhecendo causas individuais: a reacção de Leveder quando soube donde saía o eventual assassínio, comovendo-se e recusando-se a apresentar qualquer consideração, explica-se pela sua descoberta da existência de causas individuais (de traições) dentro do Partido, abalando-se assim aos seus olhos o Modelo com que sempre se confrontou; em resumo, é a reacção de alguém que se sente de todo perdido.
 
Sixto Cerdan é o intelectual independente que abandonou o Partido e que o acusa de reformismo e traição, sendo, por sua vez, acusado por este de falta de organicidade social. A característica "pureza" dos intelectuais independentes (espécie de monstruosidade à procura do apocalipse) vem-lhe desta organicidade social mínima, já que esta confina-se a falar e a deixar-se ouvir. O intelectual é acusado de não falar do social (fala de si), de falar contra ele, fazendo dele seu auditor, seu espectador, e omitindo assim a voz própria do social. E se houver diálogo, então o intelectual deixa de o ser, passa a ser outra coisa, como, por exemplo, militante.
 
Convirá, por fim, referir certos pormenores que, em consequência da posição ideológica de Manuel Vázquez Montálban face à sociedade espanhola e à situação política internacional, caem numa caracterização demasiado fácil.
 
É o caso dos agentes principais da ClA e do KGB, James Wonderful e o Gordo, o primeiro, em grande estado de degradação física e senilidade, o segundo, como funcionário obeso, ansiando pela reforma, símbolos demasiado evidentes da situação presente dos Blocos que defendem. Ou a representação kafkiana das instalações da Direcção-Geral de Segurança, repleta de funcionários carreiristas e corruptos, de ex-torcionários fascistas, agora ao serviço da democracia, principalmente para a minar com o seu imobilismo e a sua hipocrisia. E será por acaso que o assassino do secretário-geral é um elemento da pequena-burguesia, classe que, por convenção ideológica, é sempre representada como facilmente aliciável pelo jogo do mundo capitalista?
 
Pode-se, por isso, afirmar, à laia de conclusão, que Assassinato no Comité Central é também, pelo seu percurso, um livro de reabilitação. Reabilitação do Partido, não tanto pela sua prática, que se reconhece sofrer grandes contradições, motivadas, em particular, pelo seu próprio condicionalismo cultural, mas porque, para lá de todas as especificidades conjunturais, ele aparece, de forma quase irremediável, obrigado a cumprir um papel histórico único.

 

Publicado no JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias em 1982.

 
 

Título: Assassinato No Comité Central
Autor: Manuel Vázquez Montálban
Tradutor: Manuel de Seabra
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1982
259 págs., 8,90 €
 
 
 



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