segunda-feira, 11 de maio de 2015

PAT BARKER

 
 
 
 
 
ANTES DO BEM E DO MAL

 

Basta folhear qualquer história da literatura para perceber que, ao longo dos tempos, foi bem superior a participação feminina nesta forma de criação do que em qualquer outra manifestação artística. Não admira, por isso, que, desde a formação dos modelos narrativos que evoluíram para o romance clássico, tenham aparecido autoras com um papel importante na afirmação e desenvolvimento deste género literário. Porém, é também inquestionável que esta participação na criação narrativa sempre foi minoritária e que, como em muitas outras áreas da vida social e cultural, é a partir da II Guerra Mundial que a mulher/escritora começa a ter, pelo menos no contexto do mundo ocidental, uma intervenção no fenómeno literário, em termos quantitativos, muito mais próxima da que tradicionalmente era assumida pelo homem.

 
Este facto não é – e é este o aspecto que pretendo evidenciar –, de modo algum, generalizável às letras britânicas. De forma invulgar, na Grã-Bretanha, desde os finais do séc. XIX, que a mulher tem um papel preponderante no mundo literário e é assombrosamente notável o plantel de mulheres escritoras que se evidenciaram pelo seu poder criativo ao longo das gerações do último século. É tão fácil esta constatação que deixo ao leitor um pequeno exercício literário: compare o número de autoras britânicas que conhece com as pertencentes a qualquer outro país...

 
Um dos nomes, que nos dias de hoje se veio juntar a este plantel, é o de Pat Barker, a autora de quem foi agora editado no nosso país o seu penúltimo romance, intitulado Barreira Invisível. Esta romancista começou a publicar no início da década de oitenta e logo conseguiu, com o seu primeiro livro (Union Street), ser reconhecida como um dos vinte melhores jovens narradores ingleses pela prestigiada revista “Granta”. Mas é na década seguinte, após ter publicado mais três romances, com a edição da trilogia dedicada à I Guerra Mundial, habitualmente nomeada pelo título da primeira obra (Regeneration), que Pat Barker viu reconhecida as suas qualidades de narradora, ao vencer, com o segundo volume (The Eye in the Door), o “Guardian Fiction Prize” e, com o terceiro (The Ghost Road), o Booker Prize. Hoje, depois ter publicado uma dezena de romances, Pat Barker é uma autora, de um modo unanime, respeitada pela crítica e pelo público, construíndo, de uma forma recatada e sem grandes fugachos mediáticos, uma das obras narrativas mais consistentes das actuais letras britânicas.

 
Um aspecto, que, de imediato impressionará o leitor, é o classicismo do projecto literário de Pat Barker: os seus romances parecem não querer fugir aos modelos narrativos oitocentistas e aos padrões da mimésis e, por conseguinte, o seu projecto literário procura manter-se nos parâmetros do realismo. De facto, tudo isto é verdade: mas é indubitável que, mesmo seguindo essa sólida (e, na aparência, já “gasta”) tradição, Pat Barker consegue afrontar de uma forma inovadora a opacidade da realidade, tentando – mais uma vez – esgarçar o manto diáfano (como disse o nosso Eça) com que se obstina em ocultar. No fundo, a autora apenas procura ilustrar, com os seus romances, que o paradigma conceptual mudou nas últimas décadas e que, por conseguinte, a própria noção de realidade se transformou noutra coisa ainda não apreendida literariamente. Para atingir esse objectivo, é relevante como Pat Barker despoja o seu olhar, sobre a problemática que analisa, de qualquer juízo ético, expondo as suas personagens na medula das situações. Esta atitude narrativa motivou que certos critícos ingleses assinalassem que alguns dos seus romances (em particular, os da trilogia acima referida), em alguns dos seus detalhes, chegavam a tornar-se incómodos pela crueza das descrições ou dos comportamentos éticos das personagens.

 
Neste sentido, Barreira Invisível é crucial para compreender os parâmetros literários que balizam a obra de Pat Barker. Toda a trama se desenrola em redor de um psicoterapeuta (que vive uma situação de desagregação conjugal e que, ao mesmo tempo, prepara uma tese académica sobre crianças assassinas) que salva, ao passear à beira-mar, “in extremis”, um suicida de se matar. Esse suicida, por um aparente acaso, tinha sido, alguns anos antes, uma criança que fora acusada e julgada por assassínio de uma velhota, em que o testemunho pericial do psicoterapeuta foi crucial para a sua condenação, ao reconhecer que o arguido tinha já correctamente formadas as noções de bem e de mal. É em consequência desta situação que a personagem principal vai iniciar uma nova experiência terapêutica, tentando perceber o que motivou aquele jovem, enquanto ainda criança, a efectuar, possivelmente, um crime tão brutal e gratuito.

 
Como se pode perceber por este pequeno resumo da trama, Barreira Invisível permite explanar as técnicas narrativas da autora em circunstâncias e situações que – por um acaso com prováveis explicações - têm estado, e por motivos lamentáveis, na ordem do dia: criminalidade infantil, abuso sexual de crianças, miséria material e intelectual, desagregação afectiva, estirilidade, desmotivação existêncial e solidão. Todas estas situações são expostas na sua crueza, sem juízos implícitos ou explícitos, procurando apenas constatar como elas integram a “matéria humana”. Em paralelo, o romance debruça-se sobre as formas como a sociedade envolve e aceita as manifestações do Mal que se geram no seu seio e, por outro lado, como a comunicação social, pelos excessos do sensacionalismo, origina fenómenos de exlusão social. Por fim, Barreira Invisível tenta também compreender como se vão constituíndo as noções de bem e do mal, mas principalmente como estas noções interagem e se condicionam com diversos circunstancialismos, inclusive os relacionados com a voracidade caracterial que os modelos sociais competitivos motivam nos indivíduos.  

 
Sem sombra de dúvida, Barreira Invisível é um bom exemplo da solidez narrativa desta autora e um excelente contributo para a revitalização de uma editora e de uma colecção que, há já várias décadas, permanecia numa espécie de limbo existencial.

 

Publicado no Público em 2003. 

                                                                                      

 
Título: Barreira Invisível
Autor: Pat Barker
Tradução: Eduarda Melo Cabrita
Revisão literária: Maria Luísa Falcão
Editor: Ulisseia
Ano: 2003
261 págs.,  14,99 €

 

 



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