ANTES DO BEM E DO MAL
Basta folhear qualquer história da literatura para
perceber que, ao longo dos tempos, foi bem superior a participação feminina nesta forma de
criação do que em qualquer outra manifestação artística. Não admira, por isso, que, desde a formação dos modelos narrativos que evoluíram para o romance clássico,
tenham aparecido autoras com um papel importante na afirmação e desenvolvimento
deste género literário. Porém, é também inquestionável que esta participação na
criação narrativa sempre foi minoritária e que, como em muitas outras áreas da
vida social e cultural, é a partir da II Guerra Mundial que a mulher/escritora
começa a ter, pelo menos no contexto do mundo ocidental, uma intervenção no
fenómeno literário, em termos quantitativos, muito mais próxima da que
tradicionalmente era assumida pelo homem.
Este facto não é – e é este o aspecto que pretendo
evidenciar –, de modo algum, generalizável às letras britânicas. De forma
invulgar, na Grã-Bretanha, desde os finais do séc. XIX, que a mulher tem um
papel preponderante no mundo literário e é assombrosamente notável o plantel de
mulheres escritoras que se evidenciaram pelo seu poder criativo ao longo das
gerações do último século. É tão fácil esta constatação que deixo ao leitor um
pequeno exercício literário: compare o número de autoras britânicas que conhece
com as pertencentes a qualquer outro país...
Um dos nomes, que nos dias de hoje se veio juntar
a este plantel, é o de Pat Barker, a autora de quem foi agora editado no nosso
país o seu penúltimo romance, intitulado Barreira Invisível. Esta romancista
começou a publicar no início da década de oitenta e logo conseguiu, com o seu
primeiro livro (Union Street), ser reconhecida como um dos vinte melhores
jovens narradores ingleses pela prestigiada revista “Granta”. Mas é na década seguinte, após ter publicado mais
três romances, com a edição da trilogia dedicada
à I Guerra Mundial, habitualmente nomeada pelo título da primeira obra (Regeneration),
que Pat Barker viu reconhecida as suas qualidades de narradora, ao vencer, com
o segundo volume (The Eye in the Door), o “Guardian Fiction Prize” e, com o terceiro
(The
Ghost Road), o Booker Prize. Hoje, depois ter publicado uma dezena de
romances, Pat Barker é uma autora, de um modo unanime, respeitada pela crítica
e pelo público, construíndo, de uma forma recatada e sem grandes fugachos
mediáticos, uma das obras narrativas mais consistentes das actuais letras
britânicas.
Um aspecto, que, de imediato impressionará o leitor,
é o classicismo do projecto literário de Pat Barker: os seus romances parecem
não querer fugir aos modelos narrativos oitocentistas e aos padrões da mimésis
e, por conseguinte, o seu projecto literário procura manter-se nos parâmetros
do realismo. De facto, tudo isto é verdade: mas é indubitável que, mesmo
seguindo essa sólida (e, na aparência, já “gasta”) tradição, Pat Barker consegue
afrontar de uma forma inovadora a opacidade da realidade, tentando – mais uma
vez – esgarçar o manto diáfano (como disse o nosso Eça) com que se obstina em
ocultar. No fundo, a autora apenas procura ilustrar, com os seus romances, que
o paradigma conceptual mudou nas últimas décadas e que, por conseguinte, a
própria noção de realidade se transformou noutra coisa ainda não apreendida
literariamente. Para atingir esse objectivo, é relevante como Pat Barker
despoja o seu olhar, sobre a problemática que analisa, de qualquer juízo ético,
expondo as suas personagens na medula das situações. Esta atitude narrativa
motivou que certos critícos ingleses assinalassem que alguns dos seus romances
(em particular, os da trilogia acima referida), em alguns dos seus detalhes, chegavam
a tornar-se incómodos pela crueza das descrições ou dos comportamentos éticos
das personagens.
Neste sentido, Barreira Invisível é
crucial para compreender os parâmetros literários que balizam a obra de Pat
Barker. Toda a trama se desenrola em redor de um psicoterapeuta (que vive uma
situação de desagregação conjugal e que, ao mesmo tempo, prepara uma tese académica sobre
crianças assassinas) que salva, ao passear à beira-mar, “in extremis”, um
suicida de se matar. Esse suicida, por um aparente acaso, tinha sido, alguns anos
antes, uma criança que fora acusada e julgada por assassínio de uma velhota, em
que o testemunho pericial do psicoterapeuta foi crucial para a sua condenação,
ao reconhecer que o arguido tinha já correctamente formadas as noções de bem e
de mal. É em consequência desta situação que a personagem principal vai iniciar
uma nova experiência terapêutica, tentando perceber o que motivou aquele jovem,
enquanto ainda criança, a efectuar, possivelmente, um crime tão brutal e
gratuito.
Como se pode perceber por este pequeno resumo
da trama, Barreira Invisível permite explanar as técnicas narrativas da
autora em circunstâncias e situações que – por um acaso com prováveis
explicações - têm estado, e por motivos lamentáveis, na ordem do dia:
criminalidade infantil, abuso sexual de crianças, miséria material e
intelectual, desagregação afectiva, estirilidade, desmotivação existêncial e
solidão. Todas estas situações são expostas na sua crueza, sem juízos
implícitos ou explícitos, procurando apenas constatar como elas integram a
“matéria humana”. Em paralelo, o romance debruça-se sobre as formas como a
sociedade envolve e aceita as manifestações do Mal que se geram no seu seio e,
por outro lado, como a comunicação social, pelos excessos do sensacionalismo,
origina fenómenos de exlusão social. Por fim, Barreira Invisível tenta
também compreender como se vão constituíndo as noções de bem e do mal, mas
principalmente como estas noções interagem e se condicionam com diversos
circunstancialismos, inclusive os relacionados com a voracidade caracterial que
os modelos sociais competitivos motivam nos indivíduos.
Sem sombra de dúvida, Barreira Invisível é um
bom exemplo da solidez narrativa desta autora e um excelente contributo para a
revitalização de uma editora e de uma colecção que, há já várias décadas,
permanecia numa espécie de limbo existencial.
Publicado no Público
em 2003.
Título: Barreira Invisível
Autor: Pat Barker
Tradução: Eduarda Melo Cabrita
Revisão literária: Maria Luísa Falcão
Editor: Ulisseia
Ano: 2003
261 págs., 14,99 €
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