sábado, 5 de março de 2016

PHILIP ROTH

 
 
 
 

O JOGO DE MÁSCARAS
 
Um dos debates que tem atravessado a história da literatura americana contemporânea, dando origem a uma bibliografia extensíssima e que há-de continuar a desenvolver-se, é a relativa à definição de escolas literárias, tentando associar uma área geográfica ou um grupo sociocultural e/ou étnico a determinadas temáticas e a um certo estilo narrativo. Nos casos que agora nos interessa, foi na década de sessenta que, com mais rigor, se tipificou duas escolas ou grupos literários: a escola narrativa novaiorquina e a ficção de autores de origem judaica. No primeiro caso, procurava-se agregar a esta escola um conjunto de obras pautado por uma temática com dominância urbana, uma inegável qualidade formal e estilística e uma certa “modernidade” ética na análise comportamental das personagens. No segundo, integrava-se obras que se desenvolviam em redor da “problemática judaica” e onde eram visíveis os sinais da pesada tradição cultural e religiosa do Sião.
 
Decerto, à luz da actual evolução da literatura norte-americana, estas definições começam a ter muito pouco sentido. Mas não há dúvida que, para o melhor e para o pior, serviram para etiquetar e “arrumar” autores e, desse modo, dar-lhes um lugar no “puzzle” desta vastíssima literatura. Foi o caso de um autor como Philip Roth, que agora começa já a ser razoavelmente conhecido entre os leitores portugueses.
 
Philip Roth começou a publicar nos finais dos anos cinquenta e logo com a sua primeira obra, uma colectânea intitulada Goodbye Columbus and Five Short Stories, ganhou, pela primeira vez, o National Book Award (a segunda, foi com a obra, agora publicada em português, Teatro de Sabbath). Porém, foi com a sua terceira obra, Portnoy’s Complaint, que obteve notoriedade entre o grande público, em particular por retratar, com um humor corrosivo, um judeu da classe média nova-iorquina e as suas dificuldades de integração na sociedade americana. Além disso, a forma um pouco crua como retratava a sexualidade e as relações amorosas, “tingiu” esta obra de algum escândalo e provocou violentíssimas críticas por parte da comunidade judaica que via em Philip Roth um escritor que desrespeitava os costumes judaicos e que assumia uma atitude anti-semita. Depois, foi publicando com uma inquebrável regularidade a sua obra narrativa, onde se destaca o conjunto de romances em redor da personagem Nathan Zuckerman (My Life As a Man, The Ghost Writer, Zuckerman Unbound, The Amatomy Lesson e The Counterlife) e a série de obras (The Facts, Deception, Patrimony e Operation Shylock), pretensamente autobiográficas, em redor de uma personagem chamada Philip Roth... Nos últimos anos, veio a consagração definitiva: Pastoral Americana, a sua antepenúltima obra, ganhou o Prémio Pulitzer, e a penúltima, I Married a Comunist, foi - as voltas que a vida dá - finalista do National Jewish Book Award.
 
É inquestionável que existe uma presença forte da tradição cultural judaica (assim como de figuras bem tipificáveis na população de Nova Iorque) na obra de Philip Roth. E até é possível que algumas formas de perspectivar algumas das constantes obsessões da sociedade contemporânea tenham uma fundamentação matricial naquela cultura. Porém, torna-se cada vez mais nítido que esta tradição cultural judaica permanece nesta obra como uma “pose”, já que os seus objectivos orientam-se, de uma forma mais vasta, para uma espécie de exegese “cartográfica” das complexidades emocionais do homem contemporâneo nas suas dificuldades de sociabilidade e comunicação.
 
Teatro de Sabbath centra-se em Mickey Sabbath (repare-se como este nome, por si só, define um “território” de confluência de perspectivas culturais e civilizacionais), um ex-fantocheiro (e, como a própria personagem comenta, esta actividade artística, em comparação com a de marionetista - que facilmente poderia associar-se a uma visão metafísica da condição humana -, tem outro valor, uma vez que reforça o sentido de “jogo de máscaras” que a vida vai assumindo) a entrar na terceira idade, sofrendo de artrose nas mãos, e que, em consequência de algumas mortes próximas (a amante, um dos seus melhores amigos), se sente impelido a reflectir sobre o seu percurso falhado, a abandonar o seu medíocre quotidiano e, numa viagem de iniciático retorno a Nova Iorque, descer aos infernos da sua memória, confrontando-se com os “diabos” que a povoam (quer se goste ou não, a capa da edição portuguesa é bem ajustada à ambiência do romance).
 
Mickey Sabbath sempre foi um homem muito fascinado pelas mulheres e pelo sexo. É claro que, o que aqui o motiva, é o poder da sedução, de se transfigurar pela capacidade encantatória de atrair o outro para dentro do manto do seu desejo; mas é também o anseio de desvendar a sua peculiar vibração, de lhe descobrir na luz do olhar, o lodo profundo, barrento de vida, onde esbracejam as fantasias e as obsessões eróticas, que, como imagens, se “roubou” de um não-lugar (o momento civilizacional? a espécie?), se transporta na carne e com que se reveste o objecto amado. O sentido do sexo está na cumplicidade que o orgasmo produz, levando o outro, na demência da sua procura, a despojar-se dos códigos que a si próprio se impõe para obter a aceitação social e a esquecer as amputações emocionais que, na maior parte das vezes, a família lhe provocou. É este lado obscuro que encanta e hipnotiza Mickey Sabbath, levando-o a saltitar de amante em amante até tentar descobrir aquela que, pela capacidade de atingir os esplendores da plena afirmação erótica, dá a ilusão de conter a diversidade amorosa de todas as outras (e que ele está convencido de ter descoberto em Drenka, a sua amante croata). Simplesmente, esta pulsão legítima de “conhecimento libidinal” não só é utópica (e metafísica) como entra em conflito com a fidelidade que o afecto exige.
 
Porque todas as personagens de Philip Roth - e, em particular neste romance, as personagens femininas - são uma espécie de Jobs emocionais, dilaceradas pelas tensões entre o desejo e a transferência para o amante do reconhecimento que lhes faltou ao nível paterno/materno. Porém, o próprio Mickey Sabbath se sente amortalhado na sua “história” de mortes e fiascos afectivos (o desaparecimento do irmão na II Guerra Mundial, a apatia da mãe após a morte deste) e, por isso mesmo, incapaz de se “abrir” à sua necessidade de amor: ele e as suas mulheres transformam-se em “casulos” da dor que transportam na memória, crispando-se em incomunicabilidades destrutivas e que mais os aproxima da velhice e da morte que a sua própria apetência de afecto procura “adiar”.
 
Mickey Sabbath sente-se velho. Quer isto dizer, que não só se sente incapaz em termos físicos de continuar a sua vida no trilho em que sempre a encaminhou (incapaz de seduzir, de trabalhar, de acreditar) como se sente “absorvido” pela própria memória: tudo o leva a fechar-se ao exterior e o único sentido que encontra na existência é o de ser o depositário testemunhante dessa memória. Mas para quê? Percebe que a sua vida, como todas as outras, não passou de um palco onde, como único actor, apareceu, colocando as inúmeras máscaras das personagens que representava, até que, enredado no drama das suas apetências, pulsões e necessidades, nada mais ficou sob elas: quando essas máscaras se começaram a esgarçar de uso, descobriu apenas, dentro de si, o frio esquálido da morte.
 
 
 Teatro de Sabbath é uma obra de um pessimismo trágico, reforçado por um humor implacável. Mas existe nela, como nos restantes romances de Philip Roth, uma convicção contraditória (e que, de certo modo, o confronta com a tradição cultural de que é oriundo) que, nos tempos que correm, é de uma premência crucial: a de que a beleza do homem está na sua imperfeição e que não há projecto mais abominável (e, ao mesmo tempo, mais imprescindível) do que ambicionar torná-lo perfeito e imaculado.       
 
  Publicado no Público em 2000.
 
 
Título: Teatro de Sabbath
Autor: Philip Roth
Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 2000
483 págs., € 19,90
 
 
 
 
 


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