segunda-feira, 28 de março de 2016

WILLIAM FAULKNER

 
 

 
UMA TRAGÉDIA DE SOMBRAS
 
 
Quando o corpo de William Faulkner, em Julho de 1962, desceu a terra, o “som e a fúria” de uma imensa obra de ficção planava sobre uma vasta região, transfigurando-a num novo lugar da geografia mítica da literatura: o Sul dos Estados Unidos. Ninguém mais podia olhar do exterior para a sua natureza e para a sua população, sem ouvir, como que em banda sonora, o assombroso “cântico” desta obra, colando-se a elas e dando-lhes uma auréola de irreal singularidade...O seu ciclo obsessivo, de um estilo luxuriante e caoticamente sôfrego, repleto de personagens que, cruzando-se de romance para romance, sangravam um tempo e uma ética brumosos, em permanente decomposição por excesso de memória e de dor, tinha-se imposto, de forma imorredoura, como um dos mais inovadores da literatura contemporânea.
 
É certo que a sua obra sempre fora acusada de transmitir uma imagem parcial (dirão mesmo, com conotação pejorativa, “regional”) da realidade americana, da sua problemática estar deslocada do “mainstream” da literatura originária, de ter um estilo gongórico e árduo (“exasperante” chamava-lhe Jorge de Sena que, no entanto, muito o apreciava). Mesmo na Europa, e em especial em França que se orgulha de ter “descoberto” William Faulkner e onde, no imediato pós-guerra, a sua obra foi muito apreciada (Sartre chega a escrever que ele é adorado como um deus pelas novas gerações), ela nunca atingiu grandes tiragens — em particular, se as compararmos com as dos romances do seu “eterno rival”, Hemingway.
 
Porém, a obra de William Faulkner ecoa de forma excepcional no trabalho de inúmeros escritores actuais de diversas línguas e quadrantes geográficos. Mais: estes escritores não só reconhecem a sua “genialidade”, como afirmam, sem equívocos, que era impossível escreverem como escrevem sem que a obra de William Faulkner não lhes tivesse aberto as portas. De facto, mais do que a unanimidade no elogio (que ainda hoje está longe de existir), o que se admira, por parte de certos escritores, é a convicção sem pudor na dívida e a veneração pública e incondicional ao “mestre”.
 
William Faulkner é, entre os escritores deste século, um dos que, de forma mais acentuada, integra uma componente trágica em inúmeras das suas obras. É ela o cerne e o tom narrativo de, por exemplo, O Som e a Fúria, de Luz em Agosto, de A Fábula, assim como do romance, agora traduzido, de título bíblico, Absalão, Absalão!.
 
A tragédia tem sempre uma acção de presente não-visível. Quer isto dizer, que a sua acção ou é “prevista” (no sentido em que é sempre determinante a intervenção divina sobre o “fatum” humano) ou - principalmente neste tempo por maioria agnóstico - rememorada, na medida em que só a consumação dos actos lhes pode dar ou não aquela significação.
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É neste último sentido que a obra de William Faulkner tem uma constante propensão trágica, mesmo quando os seus romances explicitam outros registos: não se pode esquecer que todos os valores desta obra referenciam um universo anterior à Guerra de Secessão, um Sul que foi em definitivo marcado pelo troar das armas e pelo sangue. Além disso, a essa unidade de tempo referencial, que está subjacente mesmo nos romances em que a acção é contemporânea (como Sartre afirma: nos romances de William Faulkner não existe presente, tudo é pretérito imperfeito), o autor ainda acentuou a ambiência trágica, ao conceber um “palco” onde se processa a acção da maioria dos seus romances e que passará a funcionar como microcosmos de todo o Sul: o condado de Yoknapatawpha.
 
Assim, como sucede em Absalão, Absalão!, as personagens arrastam – em si mesmas ou em memória de outrem – códigos de honra e de ignomínia dos períodos heróicos em que a terra estava ainda virgem da propriedade e onde só o poder da força (provocando sujeições raciais e sexuais) conseguia libertar da miséria. E arrastam esses códigos pelo espaço claustrofóbico em que foram concebidos, entrechocando ambições ocultas, pesadelos familiares, vinganças de sangue. O destino trágico torna-se, portanto, um acaso sempre plausível. Não é - pelo contrário - a catadupa infindável de acontecimentos nefastos que dá apenas a dimensão trágica a Absalão, Absalão!. A saga dos Sutpen, com o seu rol de segredos infames, de miscigenações culpabilizadas, de incestos e assassínios, pela sua situação extrema, tem um valor simbólico do destino, putrefacto e magnífico, desse Sul das dignidades cavalheirescas, das plantações de algodão, da escravatura. Todas as personagens nascem já envelhecidas com o peso de uma memória irremediavelmente trágica.
 
No essencial, os Sutpen sabem que são meros títeres dos princípios e valores que originaram a divisão da terra, que hierarquizaram os homens, que os serenaram perante a culpa e a morte: tudo os marcará sem nada decidirem. E todos eles terão de pagar, de geração para geração, o pecado original de procurarem sobreviver.
 
Mas esta dimensão trágica da memória, esta sensação de todas as personagens serem peças de um jogo conduzido “ailleurs”, é reforçada pela estrutura do romance. De facto, todo ele é construído em infindáveis e sinuosas “falas” de alguém que tem necessidade de transmitir uma informação insuportável. E todas essas “falas” vão desembocar no jovem universitário Quentin Compson - espécie de “alter-ego” do autor e personagem essencial de vários romances de William Faulkner - que, por sua vez, asfixiado pela “história” dos Sutpen, sente necessidade de a contar a um colega de quarto, oriundo do Norte, de forma a que este compreenda a terra de onde o amigo vem.
 
É notório, pelo carácter obsessivo, dilacerante, com que Quentin Compson rememora os acontecimentos da família Sutpen e as suas implicações, que toda a tragédia se processa na cabeça dele, naquela memória que já não domina e determina todo o seu comportamento. Quentin Compson é um velho (“sou mais velho aos vinte anos que muitos que já morreram”, afirma a certo passo), um ser obscurecido pelas “sombras” dos Sutpen. Mesmo ele já não existe: é uma simples “voz” dos fantasmas que lhe exigem o testemunho como forma de “salvar” um sentido existencial.
 
Quentin Compson, depois de finalizar a história dos Sutpen, procura descortinar, nos labirínticos reposteiros das suas “falas”, um sentido e relembra que todas as personagens nasceram para “punir” outras personagens. Até a derradeira vergôntea dos Sutpen é um “nigro” imbecil — e “ninguém o pode agarrar e nem sempre ele se deixará ver” — que irá castigar, com a sua simples e anónima existência, toda uma história de aviltamentos da sua raça.
 
É de toda a justiça realçar, por fim, que esta edição de Absalão, Absalão!, pelo cuidado manifestado no seu “editing”, é, de facto, modelar. No entanto, confesso que a tradução já não me parece tão convincente. É certo que traduzir William Faulkner é um trabalho bem difícil e, de certo modo, impagável. Mas se não questiono o rigor e a busca de cientificidade da tradução, dá-me a ideia, contudo, que esse rigor atabafou, algumas vezes, a versatilidade literária de um estilo excepcionalmente complexo.
 
 
Publicado no Público em 1992.
 
(Foto do Autor de Martin J. Dain)
 
 
Titulo: Absalão, Absalão!
Autor: William Faulkner
Tradução: Maria Jorge de Freitas
Editor: Publicações Dom Quixote
Ano: 1992
269 págs., € 16,65
 

 


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