sábado, 1 de outubro de 2016

ALESSANDRO BOFFA

 
 
 

ÉS UM ANIMAL, LEITOR!
 
Certo dia, numa sessão pública sobre literatura para a infância e juventude, ouvi o escritor e poeta Manuel António Pina dizer que se irritava um pouco com esta classificação, porque, para ele, “a boa literatura para a infância e juventude é, antes do mais, boa literatura e ponto”. E recordava casos de obras clássicas bem conhecidas cuja inclusão na chamada literatura para a infância e juventude derivava mais do nível etário do leitor do que das características da própria obra. Confesso que, enquanto o ouvia, um pouco indeciso sobre a pertinência das suas afirmações, tentei recordar-me de casos de obras que ilustravam bem estas considerações: deixando de lado os casos clássicos, lembrei-me, entre outras, das obras “ditas de literatura para a infância e juventude” do próprio Manuel António Pina e das novelas de um escritor alemão de que gosto muito, Michael Ende (1929-1995).
 
Ao ler agora a única obra publicada de um autor italiano chamado Alessando Boffa, intitulada Sei Una Bestia, Viskovitz, recordei esta sessão e pensei que estava em presença de mais um bom exemplo para fundamentar as considerações de Manuel António Pina.
 
Torna-se difícil para mim recordar como descobri este autor de língua italiana. Creio que foi na web, na minha constante busca de obter informações para a base de dados que ando, há vários anos, a construir. Penso que deve ter ajudado a referenciá-lo o facto de saber que o seu livro foi publicado, na edição americana, por uma das editoras que mais aprecio (Alfred A. Knopf). De qualquer modo, aquilo que li na web acicatou-me o suficiente para comprar o seu livro e lê-lo - numa voragem.
 
Muito pouca informação consegui recolher sobre Alessandro Boffa. Sei que nasceu em 1955, em Moscovo, que é biólogo de formação e profissão, que tem vivido um pouco por todo o mundo e que, presentemente, vive entre a Tailândia e Roma…E que, em 1998, publicou Sei Una Bestia, Viskovitz, que obteve um significativo sucesso crítico (ganhou o Prémio Elio Vittorini) e comercial, tendo sido de imediato traduzido para diversas línguas e editado num número significativo de países.
 
Antes do mais, gostaria de tornar bem clara a minha posição em relação a esta obra, fazendo uma afirmação categórica: há já alguns anos que não lia nenhum conjunto de narrativas que considerasse tão deliciosamente divertido, fruto de um humor inteligente, e conseguindo, com argúcia (e uma boa dose de afecto), desvendar muitas das mais comuns fragilidades da condição humana… e animal. Algumas destas narrativas demonstram uma notável perícia ficcional e são tão habilmente construídas que se tornam de todo inesquecíveis. Estamos em presença – e não tenho nenhum receio em o afirmar – de uma “pequena obra-prima”.
 
A ambição de Alessandro Boffa, ao redigir Sei Una Bestia, Viskovitz, é inequívoca: construir um novo fabulário na tradição de Esopo e de La Fontaine. E – é outra aposta decisiva – com um programa narrativo na aparência simples e constante nas vinte “histórias” que constituem a obra: há um protagonista, Viskovitz, que deseja incessantemente “copular” com a bela Ljuba, aparecendo, em seu redor, um conjunto de figuras secundárias, os “companheiros” (?) Jana, Zucotic, Petrovic e Lopez que, com os seu conselhos e a sua acção, perturbam ou estimulam o problemático protagonista a “consumar” os seus desejos. Por conseguinte, o que na essência muda de história para história é o animal e, por consequência, as suas referências biológicas e etológicas.
 
De facto, sem ser uma obra de divulgação científica (é importante que o leitor não se iluda e tenha presente que o livro de Alessandro Boffa não pretende, de forma alguma, perseguir este objectivo), toda a trama narrativa de cada fábula procura respeitar, com alguma “recriação”, as características biológicas e comportamentais do animal que o protagonista e os restantes personagens encarnam. Saliente-se que, no essencial, não existe, também neste aspecto, nenhuma substancial diferença entre Sei Una Bestia, Viskovitz e a tradição fabularia já referida. Simplesmente, os conhecimentos científicos sobre o mundo animal aumentaram de forma expressiva nas últimas décadas e hoje é possível, como exemplifica bem esta obra, construir narrativas cujas personagens são caracóis, esponjas, louva-a-deus, escaravelhos, camaleões ou tubarões, e, com essa opção, arquitectar situações que, em termos analógicos, podem esclarecer inúmeras ambiguidades, obscuras fantasias, terrores, etc., que assaltam e inquietam os leitores humanos nas suas deambulações amorosas e nas suas tentativas para conseguir alguma felicidade e harmonia nesta vida.
 
Esta obra de Alessandro Boffa parte de uma constatação simples e facilmente admissível para o leitor: a de que os impulsos que estruturam a vida (a sexualidade e o desejo de reprodução, o instinto de sobrevivência e o repúdio da morte) são universais (isto é, comuns a todos os seres vivos) e, portanto, que existe este mínimo denominador entre os homens e os outros animais. Por isso, pode afirmar-se que está na matriz desta obra a convicção de que o leitor irá efectuar de forma constante, no acto de leitura, um exercício analógico entre as situações descritas no contexto animal e a sua própria experiência humana. E que esse exercício analógico se torna quase instintivo e, por conseguinte, subliminar a qualquer atitude consciente…
 
Contudo, não há nenhuma intenção “moralizadora” em Sei Una Bestia, Viskovitz, como existia na linha fabularia de Esopo e La Fontaine: é evidente que Alessandro Boffa sabe que hoje não é admissível associar a Natureza a qualquer tipo de ética – até mesmo no reino da fábula. Porém, pode-se, in extremis, deduzir destas histórias que os factores biológicos têm no comportamento e nas acções humanas uma capacidade condicionante superior ao que racionalmente se pode aceitar, considerando esta dedução como um princípio geral de uma ética.
 
Sem contar a trama de nenhuma destas fábulas, não resisto à tentação – com o fim de acicatar o apetite do leitor – de contextualizar algumas destas personagens. Imagine-se um caracol (recorde-se que é hermafrodita) que se apaixona por uma amada(o) que está à distância de uma vida; ou um louva-a-deus que só sobrevive em consequência de sofrer de ejaculação precoce; ou um camaleão, cujos problemas de identidade levam também a não conhecer de facto quem é a sua amada; ou as dificuldades de comunicação do esgana-gata (?), mergulhado no seu aquoso silêncio; ou a absurda história de amor de um leão que sobrevive à conta de documentários “wildlife”, etc., etc.
 
Percebe-se, por esta meia dúzia de exemplos, que a maior evidencia literária desta obra é o seu humor, presente não só na sintaxe, nas opções lexicais e na construção dos diálogos, mas principalmente na própria concepção das tramas narrativas. Além disso, dado o jogo de similitudes que as diversas situações descritas provocam, pode considerar-se que, numa perspectiva do público infantil, estas fábulas são excelentes instrumentos para o desenvolvimento da capacidade lógica.
 
Por tudo isto, deve compreender-se o nosso entusiástico conselho para que exista uma tradução portuguesa de Sei Una Bestia, Viskovitz no mercado editorial português: tenho quase a certeza que esta obra irá afirmar-se como uma boa via para estimular os hábitos de leitura entre a população juvenil e (porque não dizê-lo?) uma aposta interessante em termos comerciais.
 
 
Publicado na web em 2009.
 
 
Título: Sei una bestia, Viskovitz
Autor: Alessandro Boffa
Editor: Garzanti
Ano: 1998
141 págs., € 8,00
 
 
 
 
 
 


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