sexta-feira, 21 de outubro de 2016

JIM HARRISON

 

 
PELAS DESOLADAS FLORESTAS DO NORTE

 
Já vi várias vezes escrito que Jim Harrison (1937) é uma espécie de lenda viva da literatura americana contemporânea. De facto, já não é comum encontrar um autor, em plena actividade, a escrever uma prosa tão torrencial e telúrica. O seu vigor narrativo remete-nos para certa produção literária dos anos sessenta e setenta (há quem fale dele como um dos últimos expoentes da “geração beat”) e pode afirmar-se, com serenidade, que a sua estirpe literária tem, como pais tutelares, Melville, Thoreau e Whitman e, na sua prosa, confluem as dúcteis sombras de Hemingway, Faulkner e Wolfe. Além disso, o homem é uma figura inesquecível: há nele qualquer coisa de pantagruélico e o seu apetite inesgotável de viver transforma-o numa espécie de sacerdote das coisas boas da vida: a comida, a bebida, a amizade, o sexo e a comunhão com a Natureza.

 
Jim Harrison, que sempre se considerou, em primeiro lugar, um poeta, tem já uma vasta obra, onde se destaca, no campo da ficção, Legends of the Fall (1979), Dalva (1988), Julip (1994), True North (2004) ou The English Major (2008). Nunca foi traduzido ou editado em Portugal.

 
Wolf (1971), a última obra que li de Jim Harrison, é o seu primeiro livro em prosa (por favor, não desistam de ler o livro por causa do filme homónimo que, de acordo com o realizador e os guionistas – que inclui o próprio Harrison -, foi retirado deste romance (?) e que se revelou ser um disparatado equívoco). Segundo o autor, foi o escritor Thomas McGuane, seu amigo, que o incitou a escrever, depois de já ter publicado alguns livros de poemas.

 
Este romance é, de toda a sua ficção, onde é mais notória a presença da “geração beat” e da narrativa californiana (o Henry Miller de Big Sur, John Fante, Jack Kerouac, Richard Brautigan, etc.) e, naturalmente, da prosa de Thomas McGuane.

 
A expressão “A False Memoir” aparece como subtítulo de Wolf e é bem reveladora das intenções de Jim Harrison: pretende-se, antes do mais, estabelecer uma conexão ambígua entre o narrador e o autor, onde, por um lado, se alude a um estatuto de alter-ego e, por outro, se questiona o carácter biográfico da trama, remetendo esta obra para a categoria de romance. De facto, o conjunto de situações narradas serve para representar, de forma contextualizada, o quadro emocional experimentado pelo escritor ao procurar, nas suas deambulações resultantes de uma estrutural insatisfação, algum lastro e sentido para a sua própria existência.

 
O romance entrelaça dois modelos narrativos com uma enorme tradição na literatura americana: primeiro, aquele em que o narrador/personagem principal, por razões voluntárias ou involuntárias, se vê “mergulhado” numa situação limite de isolamento, com poucos meios de subsistência e em estreito contacto com o mundo selvagem, transformando-se a experiência dessa situação numa via iniciática de auto-conhecimento. Swanson, o narrador de Wolf, quando resolve refugiar-se nas Huron Mountains, uma zona de floresta inóspita, totalmente deserta, do Michigan, é com o intuito de, nesse isolamento, procurar perceber o sentido da sua peregrina existência, salpicada de cenas de sexo, muito álcool e encontros de intensa, mas fugaz, camaradagem. Porém, é esta mesma torrente de “flash-backs”, onde se descrevem encontros e desencontros que se registam em diversos locais dos Estados Unidos, que aproxima este romance da linha narrativa de obras que se tornaram conhecidas pela classificação “on the road” (em clara referência ao ultra famoso livro de Jack Kerouac), em que as situações se sucedem numa cadeia que é resultante da “viagem” do narrador/personagem principal e onde vão aparecendo figuras díspares, mas, de forma semelhante, perdidas no seu destino e na sua geografia.

 
Wolf revela ser uma lírica e, ao mesmo tempo, humorada reflexão sobre o desencanto da vida e a busca quase desesperada de encontrar formas que o serenem e superem: o deslumbramento com a Natureza, a solidão contemplativa e silenciosa, o entorpecimento evasivo com o álcool, os momentos de cumplicidade envolvente com os animais, os amigos e as mulheres, e, por último, a escrita e a poesia são entendidos como diversos afluentes que nos encaminham para um júbilo primordial que a passagem do tempo constantemente distancia e esbate.

 
No fundo, esse desencanto com a vida deriva da impossibilidade de atingir uma radical harmonia com a Natureza (tão desejada por toda a “geração beat” e também, por conseguinte, por Jim Harrison): o “lobo” (que dá título ao romance e que nunca aparece), “perseguido” pelo narrador, torna-se a referência simbólica (ou totem, para usar a expressão de um recente autor chinês, Jiang Rong, que escreveu uma vasta obra sobre a estreita relação entre os lobos e as tribos nómadas mongóis) dessa “comunhão selvagem” anterior aos “códigos” com que a civilização defende a humanidade da própria Natureza. De facto, e esta é a contradição dilacerante de toda a obra de Jim Harrison, a civilização, ao permitir que o Homem possua os “códigos” que o protegem da violência natural, transmitindo-lhe os instrumentos (ilusórios) da compreensão e expressão, injecta-lhe, ao mesmo tempo, os germes da incomunicabilidade e, por consequência, o desespero de uma vida que será para sempre incompleta.  

 
Publicado na web em 2012.

(Foto do Autor de Aaron Lynett).

 
 

Título: Wolf
Autor: Jim Harrison
Editor: Delta
Ano: 1981
224 págs., $ 15.00

 

 

 

 

 





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